Por Lenio Streck, Marco Aurélio de Carvalho e Fabiano Silva dos Santos, do Grupo Prerrogativas*
Nos Estados Unidos se diz, quando a defesa é concluída : “I rest my case”. A defesa descansa. A defesa pára. Por aqui, também temos de dizer que processos arranhados pelo tempo, pelo desgaste de uma prisão ilegal e injusta, pelas vicissitudes do cotidiano do judiciário, enfim, lanhados por idiossincrasias de personagens e interesses, efetivamente necessitam parar. Acabar.
Com efeito. Depois de uma luta de anos, finalmente o ex-Presidente Lula teve reconhecida, em seu favor, a escancarada incompetência do juízo de Curitiba para julgar os processos da chamada Força Tarefa da Lava Jato.
Mas havia algo ainda mais grave do que a violação do juiz natural: a suspeição do juiz da causa, Sérgio Fernando Moro, que se esforçou ao máximo para que seus feitos fossem “reconhecidos”. Um juiz que, como já dissemos, atirou a flecha e depois pintou o alvo.
Moro apitou pênalti no meio campo, aplicou cartão vermelho sem antes aplicar o amarelo, “conduziu” o centroavante a cobrar a infração que ele próprio “construiu”, amarrou as mãos do goleiro e, para fechar as cortinas do espetáculo (como dizia o grande Fiori Giglioti), foi trabalhar como assessor da diretoria do clube que ajudou a vencer a partida em que de forma decisiva atuou.
Não esqueçamos que no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos é pacifica a tese de que comportamentos como o do ex-juiz Moro violam a teoria da aparência. Teoria que sustenta o dever de imparcialidade dos magistrados . “Justice must not only be done; it must also be seen to be done”: eis a sentença inspirada no caso Rex vs. Sussex Justices, (1924) (UK). Como à mulher de César, não basta ao juiz ser imparcial; ele tem de parecer imparcial. O lema é: nada deve ser feito de modo a criar até mesmo a leve suspeita de que tenha havido uma interferência indevida no curso da justiça.
De forma alvissareira, o STF já julgou Moro parcial. Há sete votos nesse sentido.
Uma parcialidade criminosa e constrangedora.
Há certas coisas que não devem ficar pairando no ar. Não nos parecia realmente que o Ministro Marco Aurélio, com sua história a favor das liberdades e garantias, devesse ficar de fora desse julgamento sem ter a chance de proferir seu voto.
Em boa hora, com a devolução do pedido de vista, a matéria foi pautada para a sessão plenária desta quarta-feira. Este julgamento pode agora finalmente chegar ao fim.
A Suprema Corte julgou temas como União Homoafetiva, Presunção da Inocência, Demarcações de terras indígenas, Conduções coercitivas, Operações policiais em comunidades da periferia carioca, Habeas Corpus Coletivos e já tem maioria para assentar que parcialidade é forma de suspeição.
Depois de uma folha de relevantes serviços prestados à justiça, o Ministro Marco Aurélio começa a se despedir da Corte que integrou durante mais de trinta longos e produtivos anos participando de mais um julgamento que é histórico. Poderá se somar aos Ministros que formaram sólida maioria para de dizer que um juiz não pode coordenar os trabalhos do ministério público com o objetivo de atingir determinado resultado. Não pode ignorar provas fartas e robustas de inocência de um determinado réu para evitar que ele seja absolvido. Não pode grampear seus advogados em flagrante desrespeito ao caro e sagrado direito de defesa.
O Ministro Marco Aurélio poderá, portanto, reafirmar a importância da manutenção do princípio da imparcialidade em nosso ordenamento jurídico. Um princípio fundante do nosso Estado de Direito e um dos mais importantes pilares de sustentação da nossa Democracia.
Não fosse por sua biografia, por sua coragem, por sua independência e por sua luta pela força normativa da Constituição, e também porque esse processo tem de ter fim para que o resgate do Direito seja completo, a expectativa em relação ao seu voto poderia ser outra.
Sempre presente na linha de frente dos casos emblemáticos, o Min. Marco Aurélio não há de faltar na fase crepuscular de sua longa estada no Tribunal Constitucional brasileiro. Em especial para reacreditar um sistema de justiça contaminado por um processo avançado de politização do judiciário e de judicialização da política.
Mas independentemente do teor do voto do Ministro Marco Aurélio, queremos dizer que sentiremos saudades de seu sotaque, de seus votos dissidentes, de sua ironia fina e de suas frases carregadas de significado e alcance.
Mais do que isto. Sentiremos falta de sua coerência e de sua firme presença na defesa da nossa Constituição.
Mais do que nunca, como legado, o Ministro Marco Aurélio poderá deixar consagrada a idéia de que “processo não tem capa”. E nem poderia ter, não é mesmo?
*Lenio Streck é jurista e professor; Marco Aurélio de Carvalho é advogado; Fabiano Silva dos Santos é jurista e professor