“Tentam me apagar”: ex-juiz alvo de racismo é banido de evento “afro” da Federação Gaúcha de Futebol

Atualizado em 7 de outubro de 2023 às 8:49
O ex-árbitro Márcio Chagas

O gaúcho Márcio Chagas da Silva é um ex-juiz de futebol conhecido não apenas por sua trajetória no mundo da arbitragem, mas também por ser uma voz ativa contra o racismo.

Sua carreira foi marcada por sua competência no campo, mas também por enfrentar desafios relacionados à discriminação racial. Márcio foi alvo de ataques e xingamentos racistas em diversas ocasiões durante sua carreira.

Após encerrar sua trajetória como árbitro, tornou-se comentarista esportivo da RBS TV. Ao abordar questões de racismo no canal, foi demitido. O episódio gerou debate sobre a liberdade de expressão e a necessidade de discutir o racismo no esporte e na sociedade.

No início da semana, a Federação Gaúcha de Futebol, com o apoio da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo -, lançou o projeto “Protocolo Zero: Fim de Jogo para o Racismo”. Márcio não foi convidado a participar.

Confira a entrevista a seguir:

DCM: O atual projeto antirracista, da Federação Gaúcha de Futebol, sem sua participação e sequer fazendo referência ao racismo de que tu foste vítima, é uma resposta da entidade à tua militância?

Márcio Chagas: Não tenho dúvida alguma de que essa campanha, realizada e lançada na última segunda-feira pela Federação Gaúcha de Futebol, sem que tenha sido mencionado o grande fato racista que aconteceu no futebol gaúcho, comigo, em 2014, e pelo posicionamento e militância que eu adotei desde então, seja mais uma retaliação nesse sistema perverso racista. Na realidade, o futebol é uma extensão da nossa sociedade, ele não tá desligado, são pessoas que são, no seu dia a dia, racistas.

O que me chama atenção não é o fato de a entidade tentar me apagar, porque isso já vem acontecendo há um bom tempo. Mas sim de pessoas pretas, que se dizem antirracistas, que fazem movimentos, feiras e são de organizações de afroempreendedores, assumirem a causa e sequer terem me procurado para que eu fosse mencionado durante o evento.

Até porque essas pessoas, se não fosse o caso e a denúncia feita por mim, em 2014, jamais pisariam na Federação Gaúcha de Futebol. Então o que há no meu entendimento é aquela velha lógica da estratégia escravagista que vários colonizadores fizeram ao longo dos quase quatrocentos anos de escravatura no Brasil: fazer um confronto de pretos, um contra os outros, e ao mesmo tempo adotar aquele discurso de que “viu como eles não se dão nem entre eles?”

Mas, infelizmente, sempre que há um envolvimento do capital simbólico do dinheiro a comunidade negra tende a ceder. E o que aconteceu foi exatamente isso, né? São pessoas que no meu entendimento são paraquedistas, não conhecem o universo do futebol, estão pisando num terreno extremamente perigoso, mas serão manipulados até pra começar a diminuir os números de ocorrências, e de certa forma silenciar e apagar.

Daqui a pouco, surpreendentemente trazendo o estado do Rio Grande do Sul como o estado com o menor número de denúncias de uma hora para outra. Mas a gente sabe quem são os de verdade e quem é de mentira. E a verdade uma hora vai vir à tona e, por mais grana que esteja envolvida na história, não vai ser o suficiente para apagar a minha história, a minha luta, tanto com essa organização de pretos que tá comprando essa ideia, como da Federação Gaúcha de Futebol, que no meu entendimento é um bando de pilantra.

DCM: No evento “Protocolo Zero”, a FGF teve a presença e o engajamento de um coletivo negro. Como tu percebes isso?

Márcio Chagas: A Odabá, né? Uma organização de afroempreendedores que agora surpreendentemente aparece vinculada ao futebol. Eu entendo o porquê, consigo ter essa leitura do motivo pelo qual estão fazendo parte, até porque tem a filha de uma pessoa que trabalha na Federação Gaúcha de Futebol, então é muito mais fácil de manipular, né? Então não é uma pessoa que tem uma trajetória, uma militância e um pensamento onde não vai se dobrar pro sistema. É muito mais fácil colocar uma pessoa que pode ser flexível e jogar o jogo, do que botar uma pessoa que não tem flexibilidade e vai manter o pensamento.

Tu, como professor de história, sabes como é que se desenhou ao longo dos anos, no período da escravização, o personagem do capitão no mato, muito presente no nosso dia a dia. E o racismo alimenta para que esse capitão no mato seja fortalecido diariamente, porque é onde esse, considerado preto único, ou grupo de pretos únicos, são considerados merecedores. Os demais não estão capacitados.

Então, mesmo que ele esteja nesse ambiente bebendo água no copo de requeijão, e não no copo de cristal que o jantar colonial apresenta, ele tá satisfeito, porque ele tá, de certa forma, pertencendo àquele ambiente, né? Mas ele é mais um servidor. Ele nunca vai ser o protagonista do show e vai ser um coadjuvante podendo ser dispensado a qualquer momento. A Federação Gaúcha de Futebol é a “Casa Grande & Senzala” contemporânea. Um ambiente racista que, agora, utiliza pessoas negras como forma de limpar o trilho da sujeira que eles mesmos [Federação] vêm fazendo há anos.

Márcio Chagas

DCM: A Federação Gaúcha de Futebol tem a praxe de convidar ex-árbitros para ministrarem palestras para clubes e em cursos de formação de árbitros. Tu tens sido chamado?

Márcio Chagas: Com relação aos cursos que são feitos, quase que anualmente, e a minha não presença, é também uma maneira de mostrar e intimidar pessoas pretas que ousem fazer o curso, né? É uma forma de dizer: “se vocês adotarem uma postura que nem a desse cara, vocês serão apagados e esquecidos também. Então, vocês tem que jogar o jogo”. E esse jogo é um código de silenciamento. Não é interessante que um árbitro preto tenha posicionamento, que tenha pensamento, nem que seja inteligente. Não, tem que ser uma massa de manobra do sistema e, se porventura acontecer, e vai acontecer alguma manifestação racista nos estádios, ou até entre os colegas, como aconteceu no período que eu atuava, simplesmente se omitir ou comunicar apenas para cúpula de quem comanda para que o caso seja abafado e não seja noticiado.

A minha não presença nesses eventos é exatamente uma resposta. Quando algum aluno pergunta: “Pô, e o Márcio, por que que não participa?”, a resposta é sempre: “Não, o Márcio tem muito compromisso, ele não pode estar aqui”. Na realidade, eu sou proibido de entrar na Federação Gaúcha de Futebol, e é uma determinação que foi dada pelo presidente anterior, o Francisco Novelletto. E o atual, Luciano Hocsman, segue a linha, mesmo tendo jogado basquete comigo. Segue a linha porque é um cara omisso, covarde e que vai seguir as diretrizes dos benefícios e privilégios que a vida oportunizou.

DCM: Como é a tua relação com a imprensa após todos os episódios em torno do teu nome?

Márcio Chagas: Eu tenho alguns ex-colegas que são meus amigos ainda. Me convidam pra participar de algum podcast, algum bate-papo, alguma palestra. Mas com a imprensa local é zero. Desde a minha saída da RBS, em 2020, quando eu fui desligado por telefone, enquanto passava por um momento bem difícil na minha vida, em que minha mulher estava fazendo um tratamento de câncer, e mesmo assim não foi levado em consideração, fui demitido e falei algumas verdades do que vinha acontecendo dentro desse sistema.

Então surgiu um código entre a imprensa de meio que me bloquear e não me oportunizar nenhum espaço na comunicação. Tanto é que em 2020 eu trabalhei no canal TNT Esportes, de São Paulo, mas por aqui eu não trabalho mais em nada ligado ao esporte contribuindo com questões sobre arbitragem, em virtude do meu posicionamento. A militância tem me custado muito caro, mas eu tenho a sorte, e tenho refletido bastante nesses últimos nesses últimos dias e sou muito grato por ter vindo ao mundo através de pais conscientes e posicionados. Com certeza, se eu não tivesse tido um pai e uma mãe que me orientassem da melhor maneira possível a não me corromper e passar a perna nos outros, de repente eu já teria feito isso em algum momento da minha vida.

Mas eu sigo o que eu aprendi: ser uma pessoa correta, reta e não visar benefícios e privilégios individuais. Infelizmente, ou felizmente, eu tenho um pensamento coletivo onde eu não quero ser o único nos espaços, não quero ser o cara que vai se dar bem enquanto outros se darão mal. Então eu sigo a minha linha muito grato à educação, aos ensinamentos que os meus pais deram pra mim, não só pra mim, mas pros meus irmãos também. E eu tenho consciência tranquila de que por mais que o sistema feche inúmeras portas, outras se abrem, mesmo que timidamente, mas vão se abrindo. Então, tem sempre algum espaço onde eu consigo me inserir e manter o meu pensamento.

DCM: Tu, de alguma forma, te arrependes de ter escolhido a postura de militante crítico, enquanto outras pessoas decidiram agir de forma mais próxima às regras do sistema?

Márcio Chagas: A maior canalhice é a tentativa de isolamento e apagamento de determinadas pessoas por causa do interesse do dinheiro, né? E o que vem acontecendo aqui, no Mississipi Gaúcho, é exatamente isso. É uma tentativa de apagamento da minha manifestação, dos meus posicionamentos, do que eu venho me manifestando ao longo desses anos e como se eu fosse o louco da história, né? Então, tipo assim, “isola esse cara e deixa ele bater na parede e gritar sozinho” pra dar a ideia de que é só ele que tá se manifestando desse jeito, é só ele que tá gritando o tempo inteiro, é só ele que vê esse prejuízo. Então, é mais uma tática covarde de colonizadores que infelizmente dominam pelo capital simbólico do dinheiro, e que, infelizmente, a população negra morde a isca com muita facilidade.

Como não temos esse poder nas nossas mãos e muito menos o capital simbólico do dinheiro, a fraqueza emocional e mental declina pra que mais cedo ou mais tarde se sujeite a aceitar esse tipo de situação. Eu prefiro ficar na condição que eu tô, mesmo que em alguns momentos eu passe por perrengues. Como meu falecido pai dizia, quero que no dia em que eu não estiver mais aqui os meus filhos se orgulhem do pai que tiveram. E se algum filho da puta ousar falar mal de mim, eles estão autorizados a quebrar a cara, porque eu não joguei o jogo do sistema.