Publicado originalmente no Outras Palavras
Por Uribam Xavier
Quando Euclides da Cunha, na sua obra maior “Os sertões”, publicada em 1902, afirmou que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, talvez quisesse dizer, embora o sertanejo tenha resistido e derrotado por duas vezes as forças armadas, que ele era capaz de sobreviver às adversidades naturais do sertão e à exploração e ao domínio dos donos do capital, atributo que os dotavam de capacidades diferenciadas para suportar a servidão. Hoje, porventura, estamos constatando que parte dos brasileiros, aquela que se identifica com o pensamento político de esquerda e portadora de um pensamento crítico, seja portadora do medo de rupturas estruturais e do conflito violento com o poder, talvez, por medo de perder os privilégios de classe média num país de desigualdade brutal, comportamento bem diferente dos setores de extrema direita e fascistas que vêm se consolidando no país depois do golpe de 2016. Estes, com objetivos fascistas, colocam-se contra a ordem e forçam as esquerdas a serem o seu guardião, pois renunciaram a um horizonte político emancipador.
Na Argentina, no início de dezembro de 2022, quando a justiça condenou Cristina Kirchner por corrupção e lavagem de dinheiro, uma parte saiu às ruas para defender a prisão e outra para protestar contra esta, afirmando que se tratava de uma manobra política e jurídica para retirar Cristina da disputa pela presidência da República. No Peru, é impressionante a intensa mobilização e enfrentamento com a força policial que a maioria da população vem realizando desde 8 de dezembro de 2022, quando o presidente Pedro Castillo foi destituído e preso após tentar fechar o Congresso ao ser cassado. A população peruana, desde então, ocupa as ruas e vem se deslocando de várias partes do país para a capital pedindo a renúncia da presidenta Dina Boluarte e novas eleições gerais. O confronto da polícia com a população já produz mais de 60 mortos, mas ela não se retira das ruas, não se verga ao poder.
No Brasil, passamos quatro anos de mandato de Bolsonaro, assistindo, de forma pacífica ou adormecida, ao governo patrocinando e participando de atos antidemocráticos que pediam intervenção militar; assistimos, durante dois anos, ao governo comandando uma política genocida como forma de enfretamento da pandemia da covid-19; assistimos aos atentados golpistas por meio do terrorismo aos três poderes no dia 8 de janeiro de 2023; e assistimos ao fato chocante revelado pelas imagens dos povos originários Yanomami vitimados pela política genocida de Bolsonaro e seus ministros, mas nada de mobilização nas ruas.
É assustador o adormecimento da sociedade brasileira que se diz crítica e de esquerda, parece que ela renunciou a participar do processo de intervenção estrutural da sociedade, aderiu à ideologia do fim da história e do sujeito político, esperando resolução dos problemas a partir de algum tipo de salvador da pátria (Lula), da combinação de ações atrapalhadas dos que mantêm a servidão e exploração dos corpos e das consciências coletivas, da providência divina ou, até mesmo, do acaso.
O comportamento do brasileiro de esquerda é esdrúxulo, ele afirma, por meio das mídias sociais, “não à anistia”, mas espera, juntamente com os seus, tomando cerveja na mesa de bar ou trocando ideias em suas lives, que a partir das instituições políticas de sustentação da reprodução do capital, principalmente o poder judiciário, que se possa fazer justiça e manter a ordem. A indignação como rebelião e resistência à ordem de dominação e exploração é algo que nos falta, é algo que os partidos de esquerda não alimentam como possiblidade de sedimentação de uma nova cultura política.
Não à toa que o paroxismo da política de esquerda passou a ser “democracia sempre”, democracia como respeito às regras do jogo, num ordenamento jurídico de manutenção da ordem que garante a expansão do processo de acumulação do capital e, ao mesmo tempo, da pobreza, da miséria, da violência e da destruição do planeta.