Tradição do dote na Índia é mais maldição do que bênção

Atualizado em 2 de outubro de 2014 às 16:52

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A tradição é secular na Índia: a família da noiva dota a filha com ouro, joias e outros objetos preciosos. Tradicionalmente, esse dote permitia que a jovem esposa tivesse um status reconhecido dentro da família do noivo, também conferindo-lhe um certo respaldo financeiro, em caso de emergência.

Mas, durante o quase um século de domínio colonial britânico (1858-1947), o dote mudou de significado, escreve a historiadora americana Veena Talwar Oldenburg em Dowry murder: The imperial origins of a cultural crime (“Assassinato por dote: As origens imperiais de um crime cultural”, em tradução livre).

“Em consequência das grandes mudanças sociais e econômicas sob o domínio britânico, as mulheres perderam o direito aos bens valiosos do dote. Elas passaram a ter cada vez menos controle sobre ele. Esse processo levou a que fossem consideradas inferiores – uma desvalorização que se estendeu por toda a sua vida.”

Arraigado na sociedade

A família da noiva passou a pagar o dote diretamente à família do noivo – primeiramente, para cobrir os custos do casamento, mais tarde, esse pagamento se transformou cada vez mais numa fonte de renda. Os pagamentos do dote são, muitas vezes, um enorme fardo para a família da noiva. Por isso, um número crescente de famílias prefere ter filhos homens, tendendo a negligenciar as filhas. Em alguns estados indianos, chega-se a matar as meninas após o nascimento.

As expectativas crescentes dos noivos levam a repetidos conflitos entre as famílias, em detrimento das mulheres. No contexto de disputa por dotes, milhares delas são expulsas, espancadas, perseguidas ou até mesmo queimadas, todos os anos. Por esse motivo, a prática do dote é ilegal na Índia desde 1961.

Mesmo assim, dá-se continuidade à tradição. “Ela existe em todas as camadas da sociedade. Até mesmo pessoas com boa formação não dizem ‘não’ quando se trata do dote”, relata a policial Suman Nalwar, de Nova Déli, responsável pelo combate aos atos de violência contra mulheres.

“A sociedade indiana fortemente patriarcal, a pobreza crescente e uma desvalorização generalizada das mulheres introduziram a violência na prática do dote”, afirmou Ranjana Kumari, diretora do Centro de Pesquisa Social em Nova Déli, em entrevista à Deutsche Welle.

“Muitos se apegam a noções tradicionais, por exemplo de que após o casamento as mulheres se tornam propriedade dos maridos, e de que são sempre um encargo financeiro para suas famílias.” São frequentes os conflitos violentos, quando o noivo ou seus familiares estão insatisfeitos com o dote, ou quando a família da noiva não concorda com pagamentos adicionais.

Violência e suas consequências

De acordo com as estatísticas oficiais de criminalidade na Índia, o número de crimes violentos aumentou nos últimos anos: em 2001, 6.851 mulheres morreram em crimes associados a brigas pelo dote. Em 2012, esse número passou para 8.233, embora não esteja claro se o que realmente aumentou foram os crimes ou a frequência dos registros de queixa.

No entanto, nesse mesmo período, o número de condenações permaneceu baixo: em média, somente um terço dos criminosos foi condenado. Kumari aponta duas razões: “Por um lado, as investigações policiais são deficientes. Isso se deve ao baixo número de policiais e ao fato de muitos deles terem má formação”. Em segundo lugar, a corrupção é generalizada dentro da polícia. “Muitos funcionários aceitam propina das famílias dos réus e, então, se recusam a prosseguir com o caso.”

“Nesse contexto, muitas vezes as famílias das vítimas relutam em denunciar os agressores”, disse Savita Pande, professora de Estudos Sul-Asiáticos na Universidade Jawaharlal Nehru, de Nova Déli. “Além disso, muitos temem o estigma usualmente associado a tais processos. Assim, as disputas são frequentemente decididas fora do tribunal.”

Porém muitas vezes as disputas têm um resultado ainda mais trágico, levando muitas mulheres ao suicídio, ressalta Pande. As autoridades calculam que, em média, quatro mulheres se suicidam por hora na Índia devido a conflitos ligados ao dote, embora haja leis que as apoiam.

Necessidade de nova consciência

O desenvolvimento econômico da Índia também contribuiu indiretamente para o aumento das demandas de dote. “Os casamentos se tornam cada vez mais transações comerciais”, revelou Pande à Deutsche Welle. “O aumento do padrão de vida provocou a ganância em muita gente. Hoje em dia, os futuros maridos exigem equipamentos caros, automóveis ou apartamentos, enquanto antes se contentavam com vestimentas, joias, ou artigos mais baratos.”

Há muito os governos indianos tentam reduzir a violência e os crimes motivados pela prática do dote. Como primeiro estado, Tamil Nadu, no sul do país, criou uma unidade especial de polícia para esse fim já em 1992. Atualmente, o estado já dispõe de 200 unidades do gênero.

“Temos muitas leis, mas ainda falta a consciência do respeito às mulheres, de encará-las como iguais e de lhes proporcionar um espaço adequado na sociedade. Isso precisa ser criado entre as famílias, já que elas formam a base da sociedade”, observa Pande. Um primeiro passo seria “a recusa do dote, por ser moralmente repreensível e totalmente injustificado”, concluiu.

Especialistas concordam que não há uma solução de curto prazo para o problema do dote. Tanto os estados quanto o governo federal da Índia deveriam assumir a responsabilidade pela segurança pública feminina. Pois, se não for possível mudar as tradições e atitudes obsoletas na sociedade, também a violência contra as mulheres se manterá inabalável.

Artigo publicado no site DW.