Por Nathali Macedo.
Se tem uma coisa em que a produção do Big Brother Brasil vem se aperfeiçoando ano após ano é na diversidade do elenco. A cada edição, mais pessoas negras, LGBTQ+, nordestinas e dissidentes de modo geral são convidadas a compor o time do reality.
Isso acontece porque a globo ama a diversidade? Evidente que não. Acontece porque a globo morre de medo de ser cancelada (e quem não, nesses tempos?), e sabe que colocar um negro e um gay na casa – aquela velha história da cota preta na TV – já não pode livrá-la da enxurrada de críticas.
Toda essa “abertura” para as minorias – por livre e espontânea pressão – jamais englobou, entretanto, as travestis e transexuais. Pessoas trans não entram no BBB, não entram em grandes empresas, não entram na universidade, às vezes não entram nem na própria casa – entram apenas, na maioria esmagadora dos casos, nas estatísticas.
Nesta vigésima primeira edição, Boninho se superou no quesito “participantes desconstruidões.” Pelos meus cálculos, tem mais desconstruído – ou pseudodesconstruído – do que conservador no elenco, e isso poderia significar uma edição com menos LGBTfobia, mas o que esses primeiros dias de programa vêm revelando é justamente o contrário.
Os desconstruídões da p*rra começaram bem: homens maquiados, minissaia e salto alto, performando o que queriam fazer parecer mulheres. Lumena, a única baiana da edição – me deem licença pra puxar essa brasa para a minha sardinha – foi também a única a se incomodar com a situação, chamando a atenção para o fato de que travestis e transexuais morrem todos os dias por conta de “piadas” e “performances” como esta.
Os demais – inclusive Karol Conká, lacradora chata pra cacete – surfaram em grande estilo a onda da transfobia. “Não há necessidade de um radicalismo em uma situação como essa que foi para desconstruir. Ninguém desrespeitou ninguém” – justificou.
A pergunta é: que desconstrução é essa que não problematiza, não reflete, não afirma, só performa e ri? Isso não é desconstrução, dona Karol, isso é lacração barata, como é do feitio da senhora.
Por não concordar com essa “desconstrução” pra cis ver, Lumena foi taxada de militante chata – se fosse branca, seria chamada de “fada sensata”, mas isso é assunto pra outra conversa.
Por ora, é possível tentar entender essa mancada sob a ótica da quebra de padrões de masculinidade: batom vermelho na boca dos meninos e etc e tal. Mas não é preciso pensar muito pra entender que esse tipo de “performance” mais atrapalha do que ajuda.
Mulheres não são caricaturas. Travestis e transexuais não são caricaturas. Ser um homem hetero que se veste de mulher e desfila em rede nacional não quebra padrão nenhum: é assim que as pessoas trans são representadas desde que o mundo é mundo, como piada.
Quando um homem – sobretudo um homem heterossexual – se veste de mulher, ele não está quebrando paradigmas da própria masculinidade. Está, antes disso, encarando o feminino como fantasia, e escancarando o que para nós não é novidade: a nossa existência enquanto mulheres – principalmente no que se refere às mulheres transexuais – jamais foi levada a sério.
Eles fazem isso bêbados no carnaval, enquanto se sentem no direito de meter a mão na nossa bunda sem convite. Eles fazem isso nas festas a fantasia, pra causar e “zoar” com os amigos. Eles fazem isso na TV, nos “programas” de humor, nos shows de stand up, e continuam não apenas ridicularizando corpos femininos, como alimentando uma cultura literalmente assassina no país que mais mata pessoas trans (sobretudo mulheres trans) no mundo.
Enquanto isso os desconstruidões de Instagram seguem assinando embaixo do espetáculo transfóbico, ignorando as estatísticas, porque a “desconstrução” dessas pessoas não serve à luta contra a opressão, serve apenas aos seus likes, publis e pink money.
Polêmicas como esta são importantes – como bem disse o presidente de uma organização LGBTQ em entrevista ao Jornal Nexo – para que o debate sobre transfobia ganhe o Brasil, mas esse debate precisa estar ancorado em dados, em escuta das pessoas trans, e, principalmente, em respeito aos seus corpos.
“Se vestir de mulher não é debater transfobia” é o novo “comer uma mulher preta não te faz menos racista”.
E, como eu não sou preta, eu sei que vocês vão me chamar de fada sensata.