Eu fiz três abortos. Por Kakay

Tive formação que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil; por contingências da vida, com três parceiras, me vi impelido a encarar o aborto.

Atualizado em 8 de abril de 2022 às 11:54
Carlos Almeida fala sobre aborto
Antônio Carlos de Almeida
Foto: Reprodução

Por Kakay

Tive formação que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil; por contingências da vida, com três parceiras, me vi impelido a encarar o aborto.

“O búzio e a pérola: aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar”- Leão Formosa

Neste momento em que a discussão sobre o aborto entra na campanha pelas portas dos fundos, da hipocrisia, da indigência intelectual e da falta de compromisso com a realidade brasileira, penso ser importante que nós, a dita sociedade formadora de opinião -sim, nós existimos-, nos manifestemos.

Sou católico e tive uma formação que cumpriu o rito das famílias católicas no Brasil. Por contingências da vida, em três diferentes oportunidades, com três parceiras distintas, há longo tempo, eu me vi impelido a encarar um aborto.

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Respeitei, com dor e resignação, a decisão da mulher.

Aborto no Brasil dados
cerca de 1,1 milhão de abortos clandestinos são feitos todo ano no Brasil
Foto: Reprodução

Em nenhuma das três situações eu queria que o aborto fosse feito, mas respeitei, com dor e resignação, a decisão da mulher. Na primeira, eu era muito novo e sem nenhuma condição financeira.
Vários amigos não tiveram dificuldade em apontar um “aborteiro”.

Além da pressão e do sentimento de perda e medo, tivemos de encarar um quarto fétido, no qual as próprias pessoas na fila demonstravam que a hipótese de dar errado era enorme. Durante o procedimento, eu mesmo tive que largar a mão dela, que segurava em solidariedade, para ajudar a terminar o aborto, pois senão ela teria morrido.
Foi uma recuperação dificílima, traumática, pois ela reteve placenta, inchou muito e sentia dores horríveis. Foi preciso procurar um médico; enfim, um calvário. Nossa relação também foi abortada ali.

No segundo, a companheira tinha boa situação financeira. Optou pelo melhor hospital da cidade, internou-se com seu médico de confiança e saiu no outro dia para trabalhar. Não sei das dores indizíveis do coração dela à época, pois nossa intimidade não chegava a tanto.
Também virou um rosto apagado em minha memória, mas eu ainda carrego comigo essa sombra.
A terceira não podia fazer o aborto em um hospital da cidade, por ser muito conhecida. Nada que uma viagem rápida ao exterior não pudesse resolver.

Agora, vejo que o aborto domina a campanha presidencial.

A pergunta errada, covarde, maldosa e bandida é: “Você é a favor do aborto?”. Ora, ninguém, em sã consciência, é a favor do aborto, e não é isso o que está em discussão, salvo para os marqueteiros e os fanáticos religiosos.
O que deve ser motivo de reflexão é a realidade estampada corajosamente pelos grandes veículos de comunicação: cerca de 1,1 milhão de abortos clandestinos são feitos todo ano no Brasil; a cada dois dias, uma mulher é morta ao fazer aborto clandestino; pelos dados do SUS, o que faz presumir que o número seja muito maior, são 200 mortes por ano.

Isso sem contar as que morrem Brasil afora sem nem sequer virarem estatística. Passaram pela rede pública no ano passado, para fazer curetagem, 184 mil mulheres que abortaram clandestinamente e tiveram complicações; em 12 anos, o SUS fez mais de 3 milhões de curetagens no Brasil.

O fato concreto é que uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já abortou e mais de 5 milhões de brasileiras já passaram por esse trauma.

É a realidade batendo nas nossas caras e clamando para ser encarada como o que é: um problema, seríssimo, de saúde pública!

Se os dois candidatos, que honram o Brasil com seus currículos, admitissem em conjunto e ao mesmo tempo essa tese, estariam tirando esta discussão do obscurantismo e projetando um pouco de luz nas trevas que caem e tornam opacas as vidas de tantos brasileiros. Homens e mulheres.

Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, é advogado criminalista. Foi secretário do Conselho de Direitos da Pessoa Humana no governo Sarney.

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