Trinta anos: SUS resiste a desafios estruturais, desmonte do governo e pandemia

Atualizado em 19 de setembro de 2020 às 20:21
População manifesta apoio à chegada de 206 médicos cubanos ao programa Mais Médicos, encampado pelo SUS / Karina Zambrana – ASCOM/MS

Publicado originalmente no Brasil de Fato:

Por Nara Lacerda

A promulgação da lei que colocou na prática o Sistema Único de Saúde (SUS) completa trinta anos neste sábado (19). Fruto de um momento de mobilização social único na história da democracia brasileira, o SUS é um dos pontos centrais da Constituição de 1989. Por meio dele, o país tentava corrigir distorções seculares. Ironicamente, desde que passou a existir, o sistema luta por financiamento. Ao mesmo tempo se consolida com execelência em diversos setores, aos trancos e barrancos.

Da invasão colonialista de Portugal, no século XVI, até a redemocratização pós-ditadura militar, quase 500 anos depois, a saúde da população brasileira sempre foi um retrato mais que fiel das desigualdades do país. Ao longo dos séculos, a dinâmica de acesso a quem tinha dinheiro e a negação do direito à população mais pobre se perpetuava com graus diferentes de perversidade.

Se no Brasil Colônia a saúde não era prioridade em absoluto e os cuidados eram baseados no conhecimento de curandeiros e pajés, a estruturação que veio séculos depois não alcançou a todos. Exemplos históricos não faltam e não é difícil conectar os avanços a interesses meramente econômicos.

O início dos processos de sanitização e combate a doenças no país se concentrou em regiões portuárias, uma tentativa explícita de não prejudicar exportações. Os cuidados urbanos vieram acompanhados da eliminação e destruição de cortiços, o que reforçou a exclusão geográfica dos pobres nas grandes cidades.

Pela necessidade se forma a ideia

Na ditadura militar, a assistência só era garantida a quem podia pagar ou a quem tinha carteira assinada e a privatização recebeu incentivos consideráveis. A estrutura pública de saúde era precária, reduzida e destinada a quem contribuía com a previdência. O resto da população estava oficialmente na categoria de indigente. Contava apenas com os poucos hospitais universitários e as instituições filantrópicas.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o médico sanitarista, professor e ministro da Saúde no governo de Dilma Rousseff (PT), Arthur Chioro, relata como a saúde funcionava no Brasil até então.

“A saúde não pode ser entendida apenas como assistência. Ela envolve um conjunto de outras áreas sociais”.

“Antes do SUS, a imensa maioria dos brasileiros que não tinham carteira de trabalho assinada e não contribuíam com a previdência era literalmente considerada indigente. Essas pessoas dependiam da filantropia, das Santas Casas e beneficências e do saber popular, das benzedeiras, da medicina leiga, das ofertas de ordem religiosa. Isso explicava por que o Brasil tinha mortalidade infantil da ordem de duzentos, por que o brasileiro vivia tão pouco e por que as populações eram dizimadas por doenças infecciosas”.

O professor Nelson Rodrigues dos Santos, do departamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), usa a expressão “inusitada pressão pela inclusão social e o direito à saúde” para descrever o movimento que antecedeu à criação do SUS.

Em artigo cedido especialmente ao Brasil de Fato para a citação, ele afirma “Reportando 1990, 1º ano do SUS, metade da população brasileira mais pobre carecia de qualquer assistência à saúde e doença”. A reação só foi possível porque, segundo o professor, havia uma consciência sobre conceitos como “Universalidade, Equidade e Integralidade”.

Essa pressão foi fortemente influenciada pelo movimento de Reforma Sanitária, que na década de 1970 defendia mecanismos de proteção contra a privatização da saúde. Os debates da Constituição Cidadã e insatisfação com a falta de acesso também permearam a demanda popular.

“Nunca ficou tão claro que para a gente ter desenvolvimento econômico, social e proteger a vida da população, precisamos ter um sistema nacional de saúde potente”.

Sistema único revolucionário

A partir da implementação do SUS, em 1990, começava a tentativa de consolidação da saúde como direito universal no Brasil. Com o novo modelo, qualquer um passava a ter atendimento garantido em qualquer esfera. Antes disso, menos da metade da população conseguia acesso.

As políticas diminuíram a mortalidade infantil em mais de 70%, aumentaram a expectativa de vida do brasileiro, ampliaram acesso a atendimento pré-natal, mudaram os tratamentos para doentes mentais, as ações de combate a doenças e a vida da população em geral.

Foi também por meio do SUS que cerca de 90% dos transplantes do país passaram a ser realizados. Tratamentos de alta complexidade, tecnologias e medicamentos começaram a chegar a quem vivia totalmente à margem. Hoje, todos que procuram a uma unidade do SUS têm direito ao atendimento, independentemente de origem, histórico ou condição financeira.

O Sistema Único de Saúde é reconhecido internacionalmente pelas ações de atenção básica do programa Saúde da Família, por exemplo. A iniciativa atende mais de 120 milhões de brasileiros regularmente. As equipes atuam conhecendo a realidade dos pacientes, prestando orientações frequentes e acompanhamento constante. O reconhecimento vem da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), que incluiu o Saúde da Família entre as melhores iniciativas do planeta na área.

“É impossível para um país que escreveu na Constituição que a saúde é um direito, imaginar que ela vai voltar para uma lógica de mercado”.

É também por meio do SUS que o Brasil oferece acesso gratuito e universal aos tratamentos de HIV/Aids e hepatite, de custo altíssimo. No caso da Aids, estimativas apontam que o sistema alcança cerca de 90% dos soropositivos do país. Em duas décadas, a mortalidade entre essas pessoas caiu mais de 40%.

Soma-se a esses exemplos, um complexo de milhares de hospitais, mais de 50 mil ambulatórios, equipamentos móveis e uma infinidade de profissionais. São cerca de 2 bilhões de procedimentos a cada ano, entre cirurgias, tratamentos, internações, vacinas, campanhas e outras atividades. É possível dizer que o Sistema Único de Saúde representou uma revolução sem precedentes.

Chioro é taxativo ao dizer que considera impossível imaginar uma volta ao passado. “É impossível para um país que escreveu na Constituição que a saúde é um direito, imaginar que ela vai voltar para uma lógica de mercado. Ainda mais quando a gente sabe que a imensa maioria da população brasileira é dependente do SUS para tudo. Nós vamos voltar atrás?”

Investimento sempre foi insuficiente

A lista de revoluções que o Sistema Único de Saúde trouxe para a população brasileira é grande, mas o financiamento destinado a ele nunca foi suficiente. Quando foi estabelecido pela Constituição, havia a previsão de que o SUS receberia 30% do orçamento da seguridade social, o que nunca se efetivou.

“O pior é que, quando a gente chega em 1993, o Ministério da Previdência Social deixa de repassar recursos para a saúde, criando uma situação muito grave”, relata o professor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Funcia.

Até mesmo o mecanismo criado para contornar o problema, a Contribuição Provisória Sobre Movimentações Financeira (CPMF), não foi usada exclusivamente para a saúde. Criada no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ela foi motivo de polêmica. Causou o pedido de demissão do então ministro da Saúde, Adib Jatene, descontente com a destinação de parte dos recursos para outros fins por parte da equipe econômica da gestão tucana.

“A questão somente se equaciona no ano 2000, com a Emenda Constitucional 29, em que foi possível estabelecer um piso para a saúde, da União, dos estados e municípios. Foi o primeiro momento em que se encontrou uma forma de reduzir a questão da instabilidade do financiamento do SUS.”

Anos mais tarde, no pós-golpe contra a presidenta petista Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer (MDB) estabeleceu o teto de gastos para as despesas primárias do governo por 20 anos, com a Emenda Constitucional 95, de 2016. Segundo Funcia, isso gerou um problema a mais para o SUS.

“Tentaram dizer que a saúde estava protegida porque tinha um piso, mas nós discutimos na época que o piso estava desidratado, é um piso depreciado, que cai ano após ano. Não garante nada, não protege a saúde. Muitos dizem que é um piso e que é possível gastar mais. Mas esse argumento cai na discussão do teto. Além de ser um piso depreciado, para gastar mais você precisa tirar de outra área”, avalia.

O professor acrescenta: “A saúde não pode ser entendida apenas como assistência. Ela envolve um conjunto de outras áreas sociais. Se deterioram as condições sociais das pessoas, deterioram também a saúde e vai ter mais pressão nos gastos”.

Com o teto de gastos o investimento no SUS, que era de 15,77% da receita corrente liquida em 2017, caiu para 13,54% em 2019. A nova regra diz que o piso de 2017 será mantido por duas décadas, corrigido apenas pela inflação. O congelamento do piso e o crescimento da população fazem cair consideravelmente o investimento em saúde por habitante. Em três anos, o SUS perdeu mais de R$ 22,5 bilhões.

“Sem dúvida nenhuma as condições de saúde da população sofreram bastante. Os estados e municípios também ficam prejudicados porque dois terços do orçamento do Ministério da Saúde são destinados para o financiamento do SUS nos estados e municípios.”, ressalta Funcia.

A pandemia

O teto de gastos dificultou as possibilidades de enfrentamento do novo coronavírus e a estrutura do SUS entrou na crise sanitária global depreciada. Além disso, os recursos definidos pelo governo federal demoraram a chegar.

O estado de calamidade pública foi decretado no início de março, mas a maior parte do orçamento sequer tinha sido executada até a primeira semana de junho. Na ocasião, o Brasil já havia entrado no lamentável platô de mais de seis mil mortes por semana, que durou quase quatro meses.

“Nós nunca tivemos uma oportunidade de tanta legitimação do SUS junto à população”.

Francisco Funcia vê cenário crítico também para o pós-pandemia. “Essa morosidade na execução orçamentária guarda relação direta com uma visão de austeridade fiscal que está presente na equipe econômica. Pior, essa equipe econômica acha que, a partir de 2021, as condições serão retomadas nas mesmas bases do final de 2019. Aquilo que está apresentado para a proposta orçamentária de 2021 ignora que houve em 2020 um ano com pandemia”.

O corte será mais considerável do que o que foi visto até aqui. “O orçamento volta para os níveis de 2019, atualizado só pela inflação. Com isso o SUS vai perder R$ 35 bilhões.” Funcia destaca que o valor equivale a 35 vezes o que o governo gasta com o Samu, 17 vezes o que é investido no programa Farmácia Popular e duas vezes e meia o que é gasto com o Saúde da Família.

Apesar do “desfinanciamento”, o SUS ainda é apontado como a grande arma brasileira para enfrentamento do novo coronavírus. A cada dia, a percepção de que sem ele o Brasil poderia ter entrado em colapso aumenta. “Nós nunca tivemos uma oportunidade de tanta legitimação do SUS junto à população, de tanta respeitabilidade aos trabalhadores que estão expondo sua saúde e suas vidas”, afirma Arthur Chioro.

O desafio, segundo ele, é transformar o SUS em uma bandeira social. Nesse sentido, é essencial que os próprios usuários do sistema tenham voz e representatividade para integrar a luta pela sua defesa.

“Nunca ficou tão claro que para a gente ter desenvolvimento econômico, para ter desenvolvimento social e proteger a vida da população, nós precisamos ter um sistema nacional de saúde potente. Então, está dada a possibilidade de fazermos a disputa simbólica pela defesa do SUS”, conclui.