Publicado originalmente na Ponte Jornalismo
Apesar da pandemia do coronavírus e do isolamento social, 129 mulheres trans e travestis foram assassinadas de janeiro a agosto de 2020 no Brasil. Os dados fazem parte do quarto boletim da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), divulgados nesta segunda-feira (07/09).
Esse é o período com mais assassinatos desde 2017, quando foram registrados, no mesmo período, 118 assassinatos, seguido de 2018 com 113 casos e 2019 com 76 assassinatos. Só nesses oito meses do ano, o número de assassinatos já superou o total de crimes em 2019, quando a Antra contabilizou 124 assassinatos.
O boletim faz parte do mapeamento anual da violência contra pessoas trans feito pela Antra, que sempre é divulgado no ano posterior em 29 de janeiro, data em que se comemora o Dia da Visibilidade Trans. As pesquisadoras coletam os dados a partir de notícias publicadas nas mídias e em redes sociais.
Assinado pelas pesquisadoras Bruna Benevides e Sayonara Nogueira, o quarto boletim destaca a onda de assassinatos no Ceará, em que sete mulheres trans e travestis foram mortas no primeiro semestre e as demais no segundo semestre. Só em agosto foram registrados 5 assassinatos.
Para a pesquisadora Bruna Benevides, que é militar da Marinha e secretária de comunicação da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), o que mais chama atenção no Ceará é “falta de ações do poder público”.
“Quando Dandara foi assassinada tivemos diversas movimentações que sinalizaram que seriam tomadas ações efetivas, no entanto isso não aconteceu na prática. Vemos uma dificuldade enorme da identificação desses suspeitos, uma dificuldade enorme na elucidação desses casos”, argumenta.
“Precisamos de ações educativas junto aos órgãos de segurança pública, às escolas e à sociedade para que entendam que matar pessoas trans não é aceitável e que não deve ser naturalizado como tem sido feito. Os dados nos relevam como as pessoas tratam pessoas trans”.
Diferentemente dos anos anteriores, a Antra optou por fazer lançamentos bimestrais para visibilizar os dados de assassinatos de pessoas trans no país. Em janeiro e fevereiro, período anterior à pandemia, foram registrados 38 assassinatos. Em março e abril, primeiros meses do isolamento social, o número saltou de 38 para 64 assassinatos. Em maio e junho, o número foi de 64 para 89. No quarto bimestre o país chegou na marca de 129 assassinatos.
Em números absolutos, São Paulo é o recordista nos assassinatos, com 19 casos, seguido de Bahia e Minas Gerais com 16 assassinatos cada. O Ceará ocupa a quarta posição com 15 assassinatos e o Rio de Janeiro fecha o ranking com 7 assassinatos. Todos os estados registraram aumento em relação ao mesmo período do ano passado. De acordo com o boletim, desde 2017 esses são os estados que mais matam pessoas trans.
Para Benevides, a ausência de políticas públicas para combater a transfobia e os fatores sociais são os principais fatores para o elevado número de assassinato de pessoas trans. “Estamos falando de uma violência específica da população trans que é diretamente ligada às questões de gênero, mas que também é uma população que é totalmente precarizada, no pior sentido da palavra”, explica.
“O processo de desumanização da população trans historicamente culmina na ausência de medidas de proteção efetiva para uma violência que é efetiva. O país segue matando e cada vez menos temos políticas públicas para o enfrentamento dessa violência”.
Benevides lembra que discursos como a “ideologia de gênero” auxilia nessa violência contra pessoas trans, por não reconhecer as identidades trans. “Enquanto não formos o país que discute gênero, que discute identidade de gênero e que investe em educação cidadã para acolher a diversidade, a gente não vai conseguir avançar nesse processo de humanização”.
“Vamos viver sempre no paradoxo de um avanço em termos de decisões favoráveis do STF, mas no trato social a gente vê um retrocesso de uma agenda anti pessoas trans. É preciso reagir na base, que é a estrutura da sociedade que mantém a transfobia”, aponta.
A política eugenista, argumenta a pesquisadora, foi usada durante a pandemia para “dizer quem são as pessoas e os cidadãos que terão direito a acessar políticas públicas”. “O restante é eliminado. A pandemia tem sido usada como uma ferramenta para a eliminação de corpos indesejáveis, e aí são corpos pretos, periféricos, semianalfabetos, pessoas com HIV, pessoas trans. São pessoas que já estavam na precariedade e que se tornam agora um alvo mais fácil de ser eliminado”.
Keila Simpson, presidenta da Antra, explica à Ponte que os assassinatos de mulheres trans e travestis tem mais a ver com a questão de gênero do que propriamente com a questão da prostituição. “Nesse momento de pandemia, as profissionais do sexo diminuíram os trabalhos por conta das recomendações de segurança e mesmo assim os assassinatos acontecem”.
“É um assassinato de gênero, por não admitir que uma pessoa expresse o seu gênero como ela quer. É uma imposição machista. Claro que o trabalho da prostituição interfere por ter a questão de vulnerabilidade envolvida. A motivação principal é o gênero, a prostituição é um vetor que leva a esses assassinatos”, completa.
Por isso, destaca Bruna Benevides, é “urgente entender que somos vítimas de feminicídio, por isso usamos o termo transfeminicídio para marcar a nossa identidade de gênero, este ódio de uma identidade que não é cisgênera, que não é uma identidade reconhecida”.
A pesquisadora afirma que é preciso discutir a inclusão de mulheres trans e travestis nas leis do Feminicídio e Maria da Penha. “A questão trans é fundamental para entender o cissexismo, que é a tendência a colocar o grupo hegemônico, que é cisgênero e heterossexual, como superior e, por conta disso, questões trans não podem ser aceitar para ser pensadas estratégias e políticas públicas. Enquanto não pautarmos o cissexismo, o transfeminicídio não será discutido”.
x.x.x
PS do DCM: a pregação da violência e a negação dos direitos das minorias neste governo de Jair Bolsonaro tem resultados não apenas entre membros da comunidade LGBT, mas também entre indígenas, negros, entre outros.