POR LÚCIA HELENA ISSA
Chovia muito naquela tarde na fronteira entre Síria e Líbano, no campo de refugiados de Zahle, quando cheguei às barracas de lona que abrigavam um grupo de jovens mulheres sírias refugiadas ali.
Todas elas eram jovens muçulmanas xiitas (ao contrário do que você pode pensar, os maiores grupos terroristas hoje no Oriente Médio são sunitas e não xiitas, e foram inspirados pelo wahabbismo, doutrina sunita extremista nascida no país muçulmano mais extremista do mundo, a Arábia Saudita), haviam sobrevivido aos ataques do Estado Islâmico na Síria e naquele exato momento estavam escrevendo uma carta virtual de agradecimento ao general iraniano Soleimani, assassinado pelos EUA na madrugada dessa sexta feira em Bagdá.
As jovens muçulmanas receberam essa jornalista cristã com imenso carinho e gratidão, e com suas vozes polifônicas e divergentes quando se tratava de Al Assad, mas uníssonas quando me explicavam quem era o general Soleimani, um dos homens que mais lutaram contra o terrorismo imposto pelo EI na região de Raqqa.
Soleimani era um dos homens mais amados e reverenciados não apenas pelos iranianos, mas também por libaneses, sírios e palestinos, por sua luta contra o EI e contra o genocídio de mulheres e crianças palestinas.
Era um militar, claro, e havia cometido erros também, mas conseguira salvar milhares de crianças sírias durante os ataques de extremistas armados, como se sabe hoje, pelos EUA na Síria.
O assassinato de Soleimani, escolhido em 2017 como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista TIME, não é apenas cruel.
É também um imenso erro estratégico, um erro que apequena os EUA aos olhos do mundo e apenas os fortalece aos olhos de anões morais cono Netanyahu ou Bolsonaro, ou seus seguidores fanáticos, que desconhecem a magnitude da dor que uma Terceira Guerra Mundial nos causaria.
“Este ataque teve o objetivo de previnir futuros ataques do Irã”, dizem autoridades norte- americanas, enquanto a Casa Branca confirma que o ataque foi por ordem direta do presidente Donald Trump.
As vítimas estavam em um comboio das FMP, uma organização xiita criada para combater diretamente o EI e, posteriormente, incorporadas às Forças Armadas iraquianas. O ataque deixou ao menos oito pessoas mortas.
É assustador e imoral o que estamos testemunhando. .
Enquanto o aiatolá Ali Khamenei afirma que os EUA e aqueles que assassinaram o general-general Qassem Soleimani devem aguardar uma vingança severa, recebo uma mensagem de duas amigas, refugiadas no Líbano, com quem mantenho contato desde que passei 20 dias vivendo no campo de refugiados de Zahle.
Elas me relatam a dor de milhares de sírios e libaneses , milhares de mulheres e crianças que parecem ter perdido um amigo da família.
Não é a primeira vez que um presidente norte- americano cria uma guerra externa para tentar salvar sua imagem interna ou se reeleger.
Bush fez exatamente isso ao invadir o Iraque em 2003, mesmo sabendo que o Iraque não havia tido absolutamente nenhuma participação nos ataques de 11 de setembro e que o país de fato não possuía armas químicas ou armas de destruição em massa.
Tudo havia sido uma imensa farsa para tentar justificar a invasão aos campos de petróleo iraquianos e para remover do poder um antigo aliado norte-americano na guerra contra o Irã, um homem que decidira não mais se sujeitar aos planos econômicos dos EUA para o Oriente Médio.
A guerra insana dos EUA contra o Iraque deixou um rastro de mais de um milhão de mortos, entre eles, centenas de milhares de bebês e crianças.
Enquanto escrevo esse artigo, penso em todas as refugiadas que conheci e em toda a dor que testemunhei na fronteira da Síria.
Como se não bastassem as mais de 500 mil mortes de mulheres, homens e crianças sírias, como se não bastassem os dois milhões de feridos sírios, um milhão de mortos no Iraque, a destruição completa da Líbia, como se não bastassem os mais de 40 milhões de refugiados hoje no mundo, as milhares de escolas destruídas, as centenas de cidades árabes devastadas, as centenas de hospitais bombardeados nos últimos anos e a esperança violentada, Donald Trump acaba de comandar um assassinato que pode ser uma ameaça a todos nós.
Um presidente que, assim como Jair Bolsonaro , sequestra a semântica e os vocábulos, usando as palavras PAZ e CRISTIANISMO de forma obscena. Como se Jesus realmente tivesse pregado ou legitimado o belicismo e não o amor e o perdão.
Como se Jesus tivesse legitimado a tortura, os abusos e violência dos militares romanos na Palestina e não tivesse sido morto, crucificado e torturado pelos hipócritas religiosos de sua época e pelo império contra o qual lutou.
Como se a PAZ pudesse de fato ser obtida através de bombardeios, mentiras, fraudes, mortes e mais guerras.
São tiranos e anões morais que, não conseguindo mobilizar mentes e corações para grandes projetos humanos, os mobiliza para o mais cruel, covarde e mortal jogo liderado pelos tiranos: a guerra.