Originalmente publicado em CARTA MAIOR
Por Paul Krugman
Ainda existem, eu imagino, algumas pessoas que ainda imaginam que se e quando Donald Trump deixar o cargo, veremos o renascimento da civilidade e da cooperação na política dos EUA. Elas são, é claro, irremediavelmente inocentes. Os EUA nos anos 2020 permanecerão uma nação profundamente polarizada, repleta de teorias da conspiração malucas e, possivelmente, atormentada pelo terrorismo de direita.
Mas esse não será o legado de Trump. A verdade é que já estávamos trilhando esse caminho antes dele chegar. E no outro lado, se os Democratas conquistarem uma grande vitória, eu espero ver muitas das políticas substanciais de Trump revertidas, e depois outras mais. A proteção ambiental e a rede de proteção social provavelmente ficarão mais fortes, os ricos serão mais taxados do que eram com Barack Obama.
O duradouro legado de Trump, eu suponho, será visto nas relações internacionais. Por quase 70 anos os EUA tiveram um papel especial no mundo, um que nenhuma outra nação teve. Agora, perdemos esse papel, e não vejo como poderemos retomá-lo.
Veja, a dominância estadunidense representava uma nova forma de hegemonia para as superpotências.
O comportamento do nosso governo não era santo; fizemos coisas terríveis, apoiamos ditadores e prejudicamos democracias do Irã ao Chile. E, às vezes, parecia que um dos nossos principais objetivos era tornar o mundo seguro para corporações multinacionais.
Mas não somos exploradores grosseiros, saqueando outros países para nosso ganho pessoal. A Pax Americana possivelmente data da promulgação do Plano Marshall em 1948; ou seja, do momento em que uma nação conquistadora escolheu ajudar seus adversários derrotados a se reerguerem ao invés de exigir que pagassem impostos.
E éramos um país que cumpria com sua palavra.
Para falar da área que eu sei mais, os EUA tomaram a liderança na criação de um sistema de regras para o comércio internacional. As regras foram criadas para se adequar às ideias estadunidenses sobre como o mundo deveria funcionar, estabelecendo limites na habilidade dos governos de intervir nos mercados. Mas, uma vez que as regras estavam determinadas, nós as seguimos por nós mesmos. Quando a OIT decidiu contra os EUA, como fez no caso das tarifas do aço de George W. Bush, o governo dos EUA aceitou o julgamento.
Também nos mantivemos ao lado de nossos aliados. Podemos ter algumas disputas comerciais ou outras com a Alemanha ou a Coréia do Sul, mas ninguém considerou a possibilidade de que os EUA não interviriam se algum dos países fosse invadido.
Trump mudou tudo isso.
Por exemplo, qual é o motivo de um sistema de comércio regulamentado quando o criador do sistema e outrora guardião impõe tarifas baseadas em argumentos explicitamente de má-fé – tais como a afirmação de que importações de alumínio do Canadá (!) ameaçam a segurança nacional?
Quão útil são os EUA como aliados quando o presidente sugere que ele pode não defender as nações europeias porque, de acordo com sua opinião, elas não investem o suficiente na OTAN?
Os EUA ainda são líderes do mundo livre quando agentes do alto escalão parecem ser mais amigáveis com nações como a Hungria, onde a democracia efetivamente colapsou – ou até mesmo com autocracias assassinas como a Arábia Saudita – do que com aliados democráticos de longa data?
Agora, se Trump perder, uma administração Biden provavelmente fará o seu melhor para restaurar o papel tradicional dos EUA no mundo. Começarão a seguir as regras comerciais; reingressaremos no Acordo de Paris e rescindiremos planos de saída da OMS. Iremos garantir aos nossos aliados que os defenderemos, e reconstruiremos alianças com outras democracias.
Mas mesmo com a melhor vontade do mundo, alguns processos são irreversíveis. Não importa o quanto os EUA se tornem bons samaritanos nos próximos anos, todos lembrarão que fomos um país que elegeu alguém como Donald Trump, e que poderá fazê-lo novamente. Levará décadas se não gerações para reconquistar uma confiança perdida.
Os efeitos podem ser sutis a princípio. Outros países provavelmente não vão se apressar para confrontar uma administração Biden. Ainda pode haver um tipo de lua-de-mel global, enquanto o mundo respira aliviado.
Mas a perda da confiança nos EUA terá gradualmente um efeito corrosivo. Um expert em comércio uma vez me disse que o grande perigo, se os EUA se tornarem protecionistas, não será a retaliação, seria a rivalidade: se ignorarmos as regras, outros países farão o mesmo. O mesmo será verdade em outras frentes. Veremos um maior bullying econômico e militar dos grandes vizinhos contra países menores. Veremos farsas eleitorais mais evidentes em nações teoricamente democráticas.
Em outras palavras, mesmo se Trump for embora, o mundo se tornará um lugar mais perigoso e menos justo do que era antes, porque todos irão se perguntar e se preocupar se os EUA se tornaram um país onde esses tipos de coisas podem acontecer de novo.