Publicado no Brasil de Fato
Por Igor Carvalho e Daniel Giovanaz
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) gastou R$ 3,7 milhões desde 2020 com satélites para cobrir a agenda presidencial. A programação do canal 1 da TV Brasil foi interrompida pelo menos 130 vezes este ano para transmitir discursos de Jair Bolsonaro (sem partido) ou eventos e cerimônias com a participação dele.
Os dados foram obtidos pelo Brasil de Fato a partir de requerimento encaminhado pelo gabinete da deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ) ao Ministério das Comunicações em 21 de setembro. Na ocasião, a parlamentar pediu informações sobre “o uso político, ilegal e inconstitucional” da EBC.
Essa também é uma preocupação da Comissão de Empregados e Empregadas da EBC. Uma das integrantes, Akemi Nitahara, explica que a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, que reúne trabalhadores, pesquisadores e sindicalistas, vem levantando dados sobre as interrupções na grade desde 2019.
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“A TV pública começou a ter muitos conteúdos de governo, que não satisfazem os quesitos de interesse público. Por exemplo, entrega de boinas para alunos de um colégio militar, formaturas, eventos religiosos, entrega de obras, duplicação de trecho de rodovia”, enumera.
“Esse tipo de evento pode até ser de interesse da comunicação governamental, mas não é de interesse público, então não deveria estar na comunicação pública.”
As informações disponibilizadas pelo Ministério das Comunicações em 27 de outubro indicam que o uso político do canal é cada vez mais frequente.
Em 2020, foram 22 coberturas de eventos e cerimônias da Presidência, totalizando R$ 1.123.889,44 em gastos com transmissões via satélite. Este ano, até agosto, foram 49 coberturas, totalizando R$ 2.616.565,26.
Entre as transmissões contabilizadas no documento, estão de cerimônias de posse, homenagens, inaugurações de obras de importância municipal, visita a obras, retomada de obras paradas, ato para celebrar “vitória sobre a covid”, promoção de sargento e hasteamento de bandeira.
“Reconhecemos a importância da resposta do presidente da EBC aos nossos questionamentos. No entanto, achamos ainda insuficientes diante da gravidade do que vem ocorrendo na única empresa, em nível nacional, de comunicação pública do país”, afirma a deputada Talíria Petrone ao Brasil de Fato.
“É inadmissível que o governo Bolsonaro continue aparelhando politicamente um veículo como a TV Brasil, para fazer propaganda de sua política que só prejudica a população. Também não podemos admitir a onda de perseguição e censura contra os trabalhadores, que precisam ser reconhecidos e valorizados para exercerem seu trabalho de forma digna.”
Autonomia?
A Lei nº 11.652/2008, que autorizou a criação da EBC, estabelece “autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão.”
Em resposta ao requerimento citado, o diretor-presidente da EBC, Glen Valente, diz que a grade de programação é definida pelo Comitê de Programação e Rede (CPR). Ele omite o conselho editorial, que teria o poder de definir a grade de programação da emissora e determinar alterações a qualquer tempo, conforme o item 11 do contrato nº 04/2019, firmado entre a EBC e a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom).
O Brasil de Fato questionou a EBC sobre uma possível infração da Lei nº 11.652/2008 e sobre o papel que o conselho editorial vem exercendo na definição da grade. Não houve resposta até o fechamento deste texto.
O número de interrupções pode ser ainda maior do que as 130 informadas pelo Ministério das Comunicações. Na lista enviada em resposta ao requerimento da parlamentar do PSOL, não constam algumas das transmissões mais polêmicas da EBC.
Não foi citada, por exemplo, a live de 29 de julho em que Bolsonaro prometeu apresentar provas de que a urna eletrônica poderia ser fraudada.
“O evento ocupou 2 horas e 7 minutos da programação da TV Brasil, sem que o presidente apresentasse qualquer indício de fraude e transmitisse, sem ser contestado, desinformação que coloca em xeque a confiança da população no sistema eleitoral”, noticiou o Estadão à época.
Histórico
Trabalhadora da EBC concursada desde 2004, Akemi Nitahara diz que sempre houve preocupação com o uso político do sistema público de comunicação. Porém, as ameaças de aparelhamento se tornaram mais evidentes a partir do impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016.
A Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública foi formada justamente naquela época.
Sob governo Bolsonaro, o principal impacto foi a portaria nº 216, de abril de 2019, que unificou as grades da TV NBR e da TV Brasil. O conselho curador e a Frente em Defesa da EBC consideram essa portaria ilegal, porque ignora a diferença entre comunicação governamental e comunicação pública.
Essa diferença está prevista no artigo 223 da Constituição Federal, que estabelece complementaridade entre os sistemas de comunicação privado, público e estatal de comunicação. A TV Brasil se encaixaria no segundo, e a NBR no terceiro.
“Depois dessa portaria, começou a haver muita interrupção na grade. O programa que eles chamam de Governo Agora não consta na lista de programas da EBC, mas existe e foi descrito em uma matéria da Agência Brasil como ‘flashes ao vivo do governo federal’. Só que, no jornalismo, o termo flash é usado para coisas rápidas, curtas. Essas interrupções que acontecem hoje chegam a passar de duas horas”, descreve Nitahara.
A trabalhadora lamenta, por exemplo, que a programação infantil seja interrompida com frequência para transmitir discursos de Bolsonaro.
“Isso beira a promoção pessoal do presidente e está sendo um aparelhamento da TV pública para uso governamental, o que é irregular e inconstitucional”, afirma a integrante da Comissão de Empregados e Empregadas da EBC.
Os custos mencionados com satélite para transmissão da agência presidencial, mencionados nesta matéria, contrastam com o sucateamento com os equipamentos da EBC, denunciado há anos pelos trabalhadores.
Akemi Nitahara ressalta que o orçamento da EBC não deve ser visto como gasto, mas como investimento, desde que destinados para produção e difusão de conteúdos de interesse público.
“Recebemos recentemente computadores, gravadores, mas vemos que as antenas, toda a parte tecnológica fica defasada muito rápido. Já tivemos problemas com a queima de geradores da Rádio Nacional da Amazônia em Brasília, que é importantíssima, e ficou mais de um ano fora do ar por falta de dinheiro para arrumar”, lembra.
“O sucateamento é real. Prédios vêm sendo vendidos, parte do espaço em Brasília – que é alugado – vem sendo devolvido, as pessoas estão amontoadas em plena pandemia. Tudo isso para economizar dinheiro.”
O orçamento da EBC previsto para este ano é de R$ 655,58 milhões, praticamente o mesmo de 2020.
O Brasil de Fato apresentou à EBC as críticas e questionamentos levantados pela reportagem. A matéria será atualizada assim que houver resposta.