“Já não existe mais um único “critério ético”, tampouco existe mais um único juiz com poder para arbitrar todos os conflitos internacionais, com base na sua própria “tábua de valores”. E já não é mais possível expulsar os “novos pecadores” do “paraíso” inventado pelos europeus, como aconteceu com os lendários Adão e Eva. Como essa supremacia acabou, talvez seja possível, ou mesmo necessário, que o Ocidente aprenda a respeitar e conviver de forma pacífica com a “verdade” e com os “valores’ de outras civilizações”. (José Luís Fiori. Sobre a paz).
Dois acontecimentos sacudiram o cenário mundial neste início de 2022: o primeiro foi o ultimatum russo, lançado em meados de dezembro de 2021 e dirigido aos EUA, à OTAN e aos países-membros da União Europeia, exigindo o recuo imediato da OTAN, na Ucrânia, e propondo uma revisão completa do “mapa militar” da Europa Central, definido pelos Estados Unidos e seus aliados da Aliança Atlântica após a vitória na Guerra Fria.
O segundo foi a “declaração conjunta” da Federação Russa e da República da China, no dia 7 de fevereiro de 2022, propondo uma “refundação” da ordem mundial estabelecida depois da Segunda Guerra Mundial e aprofundada depois da vitória dos EUA e de seus aliados na Guerra do Golfo em 1991. Os dois documentos propõem uma “revisão” do status quo internacional, mas o primeiro contém objetivos e exigências imediatas e localizadas, enquanto o segundo apresenta uma verdadeira proposta de “refundação” do sistema interestatal “inventado” pelos europeus. Ambos, no entanto, estão apontando neste momento para uma reconfiguração profunda do sistema internacional.
No caso do “ultimato russo”, a questão imediata que está em jogo é a incorporação da Ucrânia pela OTAN, mas o verdadeiro problema de fundo é a exigência russa de revisão das “perdas” que lhe foram impostas depois da dissolução da União Soviética.[1] Depois de 1991, a Rússia perdeu 5 milhões de quilômetros quadrados e 140 milhões de habitantes, mas agora se propõe a reduzir essas perdas expandindo sua influência no seu entorno estratégico e afastando a ameaça ao seu território, por parte da OTAN e dos Estados Unidos.
Esse ultimatum era perfeitamente previsível e veio sendo anunciado há muito tempo, pelo menos desde a “Guerra da Geórgia”, em 2008.[2] A grande novidade agora é que a proposta revisionista dos russos deverá avançar sem guerra, através de um jogo de xadrez extremamente complexo, no qual se acumulam as ameaças militares e econômicas, mas não deverá haver um enfrentamento direto, apesar da propaganda e da histeria psicológica provocada pelos anúncios sucessivos da “invasão que não houve”, sobretudo da parte dos Estados Unidos e da Inglaterra.
A Rússia obteve uma vitória imediata ao conseguir colocar todos os demais atores envolvidos em torno de uma mesa para discutir os termos da sua proposta. E o mais provável é que os seus principais pleitos sejam atendidos, sem invasão nem guerra. Além disso, nas discussões evidenciaram-se a divisão entre as potências ocidentais e a falta de inciativa e liderança da parte do governo norte-americano, que se restringiu a repetir a mesma ameaça de sempre, de que imporia novas sanções econômicas aos russos caso ocorresse a invasão que foi reiteradamente negada pelos próprios russos, enquanto a iniciativa diplomática passava quase inteiramente para as mãos dos europeus.
Os Estados Unidos não receberam o apoio que esperavam de seus velhos aliados do Oriente Médio (nem mesmo de Israel), da Ásia (nem mesmo da Índia), e mesmo da América Latina (nem mesmo do Brasil). E o que é pior, para os anglo-saxões, tudo indica que a Alemanha terá um papel fundamental na intermediação diplomática do conflito, o que envolveria numa reaproximação entre os alemães e os russos, com a liberação imediata do Gasoduto do Báltico que sempre teve a oposição dos norte-americanos. Afora o fato que um eventual sucesso diplomático alemão neste conflito daria à Alemanha uma centralidade geopolítica dentro da Europa que aceleraria o declínio da influência dos Estados Unidos entre seus aliados europeus. Neste sentido, um acordo diplomático “intra-europeu” seria também uma derrota para os Estados Unidos, mas ao mesmo tempo é impossível imaginar que um acordo deste tipo possa ter sucesso sem o apoio dos próprios Estados Unidos e da Otan que é na prática um “braço armado norte-americano”.
Já no caso do documento apresentado à “comunidade internacional” pela Rússia e pela China, no dia 7 de fevereiro, as reivindicações específicas e locais dos dois países são bem conhecidas e não têm maior importância neste contexto. A importância do documento vai muito além disto, porque se trata de fato de uma verdadeira “carta de princípios” proposta à apreciação de todos os povos do mundo, contendo algumas ideias e conceitos fundamentais para uma “refundação” do sistema internacional criado pelos europeus há quatro séculos. É um documento que requer leitura atenta e uma reflexão séria, sobretudo neste momento de desestruturação do “bloco ocidental” e de divisão e fragilização interna dos próprios Estados Unidos.
O primeiro aspecto que chama atenção nesse documento aparentemente insólito é sua defesa de alguns valores muito caros ao “sistema de Westfália”, como é o caso de sua defesa intransigente da soberania nacional, e do direito de cada povo decidir seu próprio destino, desde que respeitado o mesmo direito de todos os demais povos. Ao mesmo tempo, o documento defende também algumas das ideias mais destacadas do “liberal-internacionalismo” contemporâneo, como é o caso da sua defesa de uma ordem internacional baseada em leis, do seu entusiasmo pela globalização econômica e o multilateralismo, por sua defesa da “causa climática” e do desenvolvimento sustentável, e seu apoio irrestrito à cooperação internacional no campo da saúde, da infraestrutura, do desenvolvimento científico e tecnológico, do uso pacífico do espaço e do combate ao terrorismo.
De um ponto de vista acadêmico e ocidental, aliás, esse “documento russo-chinês” lembra muitas vezes o idealismo internacionalista de um Woodrow Wilson, tanto quanto lembra, em outros momentos, o idealismo nacionalista de um Charles de Gaulle. Mas a surpreendente originalidade desse documento aumenta ainda mais com sua defesa universal e irrestrita de valores como a liberdade, a igualdade, a justiça, os direitos humanos e a democracia. Sobretudo quando assume a defesa da democracia como um valor universal, e não como privilégio de algum povo em particular ou responsabilidade conjunta de toda a comunidade internacional, com o reconhecimento simultâneo de que não existe apenas uma forma de democracia, nem nenhum “povo escolhido” que possa ou deva impor aos demais algum modelo superior de democracia, como se fosse uma “verdade revelada” por Deus.
É neste ponto que se explicita a proposta verdadeiramente revolucionária desse documento: que se aceite de uma vez por todas que, pelo menos desde o final do século XX, o sistema interestatal não é mais um monopólio dos europeus e de algumas de suas ex-colônias, uma vez que ele está formado agora por várias culturas e civilizações, e que nenhuma delas é superior às demais, nem muito menos possui o monopólio da verdade e da moralidade.[3] Ou seja, esta proposta eurasiana de uma nova ordem mundial rejeita qualquer tipo de “universalismo expansivo” ou “catequético”, mas aceita ao mesmo tempo a existência de valores universais.[4]
Não haveria nada de original em tudo isso se tais ideias fizessem parte de um texto acadêmico ou de uma reflexão filosófica pós-moderna, por exemplo. O que faz a diferença nesse documento não é seu multiculturalismo; é o fato de que este multiculturalismo aparece aqui como uma reivindicação e uma proposta universal apresentada e sustentada pela segunda maior potência atômica do mundo, e pela segunda maior economia de mercado do mundo. Mais ainda, que seja uma proposta sustentada por uma potência que faz parte da árvore genealógica da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, por uma potência e uma civilização que não pertence a esta mesma matriz, nem teve jamais nenhum tipo de vocação catequética.
Sim, porque a China se desfez do seu Império milenar e só se transformou num Estado nacional no início do século XX; e foi só no final do século XX que ela se integrou plenamente ao sistema interestatal, incorporando-se à economia capitalista mundial numa velocidade e um sucesso extraordinários. Desde então, o Estado nacional chinês se comporta como todos os demais Estados europeus, mas a China nunca teve nenhum tipo de religião oficial, e nunca se propôs ser um modelo econômico, político ou ético universal – e por isso também nunca se propôs a catequizar o resto do mundo.
Pelo contrário, a China parece fazer questão de se relacionar com todos os povos do mundo independentemente de regimes políticos, religiões ou ideologias, mesmo quando seja absolutamente inflexível com relação à defesa nacional de seus valores tradicionais e interesses de sua civilização milenar. Por isso, se for o caso de especular sobre o futuro desta “nova era” que está nascendo, é preciso ter claro que a China não está se propondo a substituir os Estados Unidos como centro articulador de algum tipo de novo “projeto ético universal”.
Tudo indica que o avanço desta nova “era multicivilizacional” já não tem como ser revertido, nem há mais como devolver o sistema mundial à sua situação anterior, de completa supremacia eurocêntrica. “E mesmo que o eixo do sistema mundial ainda não tenha se deslocado inteiramente para a Ásia, o certo é que já se estabeleceu um novo “balanço de poder” que deslocou a hegemonia anterior, do projeto universal e do “expansionismo catequético” da tradição greco-romana e judaico-cristã”.[5]
*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).
[1] O Abade de Saint Pierre (1658-1743), filósofo e diplomata francês do início do século XVIII foi o primeiro a formular a tese que depois foi retomada por vários outros autores, de que uma das principais causas das novas guerras é o desejo de reparação ou “revanche” dos derrotados das guerras anteriores, na sua obra Projeto para tornar perpétua a paz na Europa (Brasília: Ed. UnB, 2003).
[2] Fiori, J. L. Guerra e paz. Jornal Valor Econômico, São Paulo, 28 ago. 2008.
[3] “Some actors representing but the minority on the international scale continue to advocate unilateral approaches to addressing international issues and resort to force, they interfere in the internal affairs of their states, infringing their legitimate rights and interests…” (Joint Statement of the Russian Federation. And the People’s Republic of China”, en.kremlin.ru/supplement /5770, p. 1).
[4] “The sides call on all States to pursue well-being for all and with these ends, to build dialogue and mutual trust , strengthen mutual understanding champion such universal human values as peace, development, equality, justice, democracy and freedom, respect the rights of peoples to independently determine the development paths of their countries and the sovereignty and the security and development interests of States, to protect the United Nations-driven international architecture and the international law-based world order, seek genuine multipolarity with the United Nations and its Security Council playing a central and coordinating role, promote more democratic international relations and ensure peace, stability and sustainable development across the world”
(“Joint Statement of the Russian Federation. And the People’s Republic of China”, en.kremlin.ru/supplement /5770, p. 2).
[5] Fiori, J. L. “A Pax Romana: conquista, império e projeto universal”. In: ______. (Org.) Sobre a Paz. Petrópolis: Editora Vozes, 2021, p. 131.