A América Latina foi infestada, a partir dos anos 1950, por militares patrocinados pelos Estados Unidos.
Eles transformaram a região num monumento abjeto da desigualdade social, e impuseram com a força das armas sua tirania selvagem e covarde.
Pinochet foi o maior símbolo desses militares, aos quais os brasileiros não escaparam: Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo foram capítulos lastimáveis da história moderna nacional.
Hugo Chávez rompeu, espetacularmente, com a maldição dos homens de farda a serviço dos americanos e de uma pequena elite predadora e gananciosa.
Paraquedista de formação, coronel na patente, Chávez escolheu o lado dos excluídos, dos miseráveis – e por isso fez história na sua Venezuela, na América Latina e no mundo contemporâneo.
Chávez foi filho do Caracaço – a espetacular revolta, em 1989, dos pobres venezuelanos diante da situação desesperadora a que foram levados na gestão do presidente Carlos Andrés Perez.
Carne de cachorro passou a ser consumida em larga escala por famintos que decidiram dar um basta à iniquidade. A revolta foi esmagada pelo exército venezuelano, e as mortes segundo alguns chegaram a 3 000.
Uma ala mais progressista das forças armadas ficou consternada com a forma como venezuelanos pobres foram reprimidos e assassinados.
Hugo Chávez, aos 34 anos, pertencia a essa ala.
Algum tempo depois, ele liderou uma conspiração militar que tentou derrubar uma classe política desmoralizada, inepta e cuja obra foi um país simplesmente vergonhoso.
O levante fracassou. Antes de ser preso, Chávez assumiu toda a responsabilidade pela trama e instou a seus liderados que depusessem as armas para evitar que sangue venezuelano fosse vertido copiosamente.
Chávez aprendeu ali que o caminho mais reto para mudar as coisas na Venezuela era não o das armas, mas o das urnas.
Carismático e popular, Chávez se elegeu presidente em 1998. Pela primeira vez na história recente da Venezuela, um presidente não dobrava a espinha para os Estados Unidos.
Isso custou a Chávez a perseguição obstinada de Washington. Mas entre os venezuelanos pobres – a esmagadora maioria da população – ele virou um quase santo.
A tristeza dos pobres em seu funeral só guarda paralelo com dois outros lutos na América Latina: a morte de Getúlio, no Brasil, e a de Evita, na Argentina.
Chávez comandou projetos sociais – as missiones — que retiraram da miséria milhões de excluídos. Alfabetizou-os, ofereceu-lhes cuidados médicos por conta de médicos cubanos – e acima de tudo lhes deu auto-estima. Os desvalidos tinham enfim um presidente que se interessava por eles.
O tamanho da popularidade de Chávez pode se medir num fato extraordinário: um grupo bancado pelos Estados Unidos tentou derrubá-lo em 2002. Mas em dois dias ele estava de volta ao poder, pela pressão sobretudo dos mesmos venezuelanos humildes que tinham protagonizado o Caracaço.
Quanto ele mudou a Venezuela se percebe pelo fato de que, nas eleições presidenciais de outubro passado, a oposição colocou em seu programa os projetos sociais chavistas que, antes, eram combatidos e ridicularizados.
Antes de morrer, Chávez teve tempo de pedir aos venezuelanos que apoiassem Nicolas Maduro, seu auxiliar e amigo mais próximo. Foi apoiado. Maduro ganhou as eleições mesmo contra uma coligação infindável de grupos de oposição.
Um ano depois da morte de Chávez, os Estados Unidos, fieis a seus velhos métodos de desestabilização, estão por trás de protestos de gente que pede não inclusão, não justiça social — mas o retorno da antiga ordem iníqua e abjeta.
É aquela história: os americanos falam em democracia mas não hesitam em destruí-la em outras partes para manter seus privilégios internacionais. Os brasileiros sabem dolorosamente disso, por conta de 64.
As chances da Venezuela de resistir à sabotagem smericana podem crescer agora com a demonstração da Rússia de que não quer mais ficar num segundo plano em relação aos Estados Unidos. Ontem, o governo venezuelano divulgou uma carta em que Putin homenageava Chávez, e nele os avanços sociais dos últimos anos.
Há problemas econômicos na Venezuela? Claro. Mas Chávez herdou uma situação calamitosa. A elite venezuelana não poderia ter feito um trabalho mais deletério no comando do país.
Chávez se bateu epicamente por consertar um país socialmente putrefato. Não bastasse o tamanho dos desafios, trabalhou todo o tempo sob boicote da plutocracia venezuelana e dos senhores dela, os Estados Unidos.
Seu maior feito é que a Venezuela, pós-Chávez, jamais voltará a ser o que foi antes dele – um quintal dos Estados Unidos administrado por uma minúscula, gananciosa, predadora elite que jamais enxergou os pobres.