Os futuros anais históricos da Bruzundanga contarão admirados as efemérides daqueles remotíssimos dias de março de 2016. No quarto dia daquele mês, sexta-feira aziaga, certo juiz da roça, um tanto guapo, outro tanto aloprado, prendeu por um dia um ex-presidente da república que era também um ex-operário. O acontecimento espetacular acelerou a história.
As duas semanas seguintes foram um deus nos acuda. O juiz da roça, ao que se dizia um simpatizante do partido da ave de bico comprido, bisbilhotou e divulgou ilegalmente conversas de autoridades diversas, até mesmo da presidenta da Bruzundanga. O magistrado de província justificou os atos que praticara à revelia da lei como decorrentes da elevadíssima estatura moral de sua pessoa e de seus propósitos.
Tais escutas telefônicas, consideradas de gravidade ímpar por parte da imprensa que as considerou de gravidade ímpar (sic), tinha como objetivo conclamar a massa dos cidadãos parrudos da república a ir para a rua e mostrar a sua cara.
Eles foram. Carregaram cartazes com a cara do juiz da roça, que não coube em si de contente e filosofou, mui profundamente, sobre a sabedoria das ruas e a necessidade de ouvi-las. Era preciso derrubar o governo da Bruzundanga. Dirigentes do partido da ave de bico comprido e do partido que nunca está fora do poder reuniram-se para planejar o novo governo, nomear ministros, pactuar o aprofundamento da política econômica em curso, que não vinha dando resultado, o que comprovava a excelência de sua concepção.
Uma sumidade do partido da ave de bico comprido acalmou os políticos que seriam depostos, perseguidos pelo juiz da roça e enviados para o calabouço. Explicou mui serenamente que o novo governo não seria vingativo. Um magistrado da Altíssima Corte do país tagarelava todos os dias, em entrevistas à mídia, a respeito de como julgaria os processos que ainda lhe chegariam à mesa para julgar (sic). Num último lance genial, uma espécie de cereja do bolo, um ex-presidente que era também um ex-intelectual, muito indignado com a possibilidade de o ex-presidente que era também um ex-operário ocupar uma pasta ministerial, sentenciou: “analfabeto não pode ser ministro”.
Que tempos memoráveis! Machado de Assis, intérprete-mor da Bruzundanga, escreveu um livro, chamado Memórias póstumas de Brás Cubas, que consistiu numa espécie de tratado de interpretação sociológica das duas semanas da história da Bruzundanga, naquele ano de 2016, decorridas entre o quarto e o décimo oitavo dias de março. Em tal compêndio de sapientíssima hermenêutica do repertório simbólico da sociedade bruzundanguense, o autor formulou o conceito de descaramento ou desfaçatez de classe.
Autor genial e complexo, Machado de Assis só teorizava por meio de alegorias, ou por linhas tortas, que é um jeito mais simples de dizer a mesma cousa. Por isso inventou Brás Cubas, outro guapo da história pátria, narrador e protagonista das Memórias. Brás Cubas não era um autor defunto, mas um defunto autor. Quer dizer, ele decidiu contar a própria história depois de morto, enviando os capítulos, direto do além-mundo, por correio sideral.
A circunstância de morto dava ao autor daquelas páginas uma desenvoltura primorosa: “Agora… que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo”; e se o livro, “fino leitor”, “te não agradar… pago-te com um piparote”, que, ao que parece, era como se dizia “peteleco” naquela época.
Por conseguinte, o primeiro elemento constituinte do conceito de desfaçatez de classe é o transbordamento de autoconfiança, ou o impudor radical, que passa a guiar as atitudes de Brás Cubas e seus semelhantes. Podem “confessar tudo” o que pensam e fazem. Brás Cubas foi sujeito rico, dono de propriedades no Rio de Janeiro imperial, senhor de escravos, entre eles Prudêncio. Este era “um moleque de casa”, “o meu cavalo de todos os dias”; “punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o”. Se Prudêncio reclamasse, Brás retorquia: “Cala a boca, besta!”
Brás Cubas sofria de monomania em relação às mulheres. Ele organizou a sua narrativa em torno das personagens femininas de sua vida, desde Pandora ou a mãe Natureza, que lhe aparecera no delírio derradeiro antes da morte (ou no momento do nascimento do defunto autor), até Virgília, passando por Eugênia, Marcela, dona Plácida etc. Dona Plácida foi uma criada da família de Virgília, que se tornou depois alcoviteira dos amores clandestinos desta senhora com o memorialista.
Brás se perguntou certa vez sobre a utilidade da vida de dona Plácida, queria desvendar o porquê de sua vinda ao mundo. Chegou à seguinte conclusão: “Para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital”.
As historietas de Prudêncio e dona Plácida encapsulam o segundo elemento constitutivo do conceito de descaramento ou desfaçatez de classe. A desfaçatez de classe acontece quando a classe brascúbica, uma vez achacada de crise de despudor, como ocorreu na Bruzundanga naquelas memoráveis Jornadas de março de 2016, destampa ao mundo os mais recônditos segredos de sua maneira de ver as cousas, segundo a qual negros, mulheres e pobres existem para ralar ou empurrar traquitanas enquanto o patronato chiquérrimo vocifera, à beira-mar, contra a presidenta eleita.
Brás Cubas articulou teoricamente a ideia, central ao conceito sociológico de desfaçatez de classe, de que as desigualdades ou injustiças sociais são parte necessária da paisagem, assim como as montanhas, os rios e as praias: “Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares”.
Quiçá o momento analiticamente mais promissor das Jornadas de março de 2016 tenha sido o comentário do ex-presidente que era também ex-intelectual, de que “analfabeto não pode ser ministro”. A concisão dialética da frase é notável. Ao decifrá-la à luz do conceito de desfaçatez de classe, temos uma visão de mundo construída por metáfora, ou pela transposição do sentido próprio ao figurado. Assim, “analfabeto” significa a maioria da população da Bruzundanga, cujo lugar social, em respeito à tradição, deve permanecer o mesmo na longa duração histórica, com tendência ao infinito. Já “ministro” é fórmula abreviada de dizer classe brascúbica, conforme a definição de Machado de Assis (op. cit., passim).
Um participante das manifestações de 18 de março, contrárias ao impedimento da presidenta, foi às ruas com um cartaz no qual criticava a tese de Machado de Assis a respeito da desfaçatez de classe, por considerá-la desnecessariamente hermética. Segundo o manifestante, a crise política da Bruzundanga se resumia ao seguinte: “Quando a senzala aprende a ler, a casa grande surta”. Isso escrito em letras garrafais, o que é uma maneira de vencer no grito, e Machado de Assis era gago, o que de antemão deu ganho de causa ao crítico popular.
Os anais históricos da Bruzundanga guardam um enigma. Os historiadores não descobriram o que aconteceu depois das Jornadas de março. Uns dizem que as duas semanas de desfaçatez de classe demonstraram o poder invencível da classe brascúbica, logo o impedimento da presidenta era fait accompli, favas contadas. Outros, adeptos de ver as cousas por meio de velhos adágios populares, sustentaram que “a cura veio pelo excesso do mal”. O descaramento de classe suscitou o demônio rubro da resistência, quer dizer, a virada satânica da história.
Outra personagem popular, cheia de ouvir tanta teoria, recorreu ao tesouro de sabedoria do esporte bretão e acabou com esta crônica: “O jogo é jogado, e só acaba quanto termina”.
O artigo acima foi escrito pelo professor e historiador Sidney Chalhoub. Ex-Unicamp, Chalhoub leciona agora História da América Latina e do Caribe na universidade de Harvard.