“Um dia pedirão desculpas pelas delações, como fizeram por apoiar a ditadura”, diz criminalista

Atualizado em 25 de setembro de 2017 às 10:00
Delação premiada segundo o Porta dos Fundos

Publicado no Conjur.

POR SÉRGIO RODAS

Em 1964, entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Grupo Globo, apoiaram o golpe militar que depôs o presidente João Goulart e instituiu uma ditadura no país. Somente com o passar dos anos essas instituições admitiram que erraram. Da mesma forma, um dia pedirão desculpas por glorificar as delações premiadas e tornarem esse instrumento a base do processo penal, desrespeitando direitos e garantias fundamentais. É o que acredita o criminalista Nélio Machado, sócio do Nélio Machado Advogados.

Defensor de presos políticos na ditadura militar, Machado garante que era mais fácil ser advogado de defesa na época do que hoje em dia. Segundo ele, a onda de punitivismo impulsionada pela operação “lava jato” e suas delações cresceu a ponto de quase criminalizar a advocacia. Ao mesmo tempo, o Ministério Público e juízes severos são aplaudidos pela opinião pública.

Um exemplo desse descompasso, de acordo com o criminalista, está na condenação do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (PMDB) a 45 anos e 2 meses de prisão. “Era melhor ter decretado prisão perpétua”, ironiza, lembrando que Elize Matsunaga, que assassinou e esquartejou seu marido, recebeu pena de 19 anos e 11 meses.

Grande parte da culpa por esses exageros está na forma como as colaborações premiadas vêm sendo usadas no Brasil, ressalta Machado. Ele diz que acusados estão sendo forçados a delatar, critica o peso exagerado que atribuem às informações de colaboradores e avalia que juiz que homologa um acordo do tipo não deveria poder julgar ações que usem suas informações.

Crítico do compromisso de delação firmado por executivos da JBS, Machado apoia sua rescisão direta. Até porque recall de colaboração “é uma anomalia”, declara.

Porém, o criminalista avalia que o Supremo Tribunal Federal precisa avançar na discussão do instituto. Um ponto que a corte deve mudar, na visão dele, é a possibilidade de alguém citado em delação poder questionar o acordo – algo que os ministros entenderam não ser possível. O advogado opina que isso deve ser permitido se ficar demonstrado que a cooperação teve omissões, favorecimentos e fraudes.

Em entrevista à ConJur, concedida em seu escritório, no centro do Rio de Janeiro, Nélio Machado ainda atacou a execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação, lamentou que jovens advogados não estudem o passado e defendeu que juízes adquiram mais experiência antes de ingressar na carreira.

Leia a entrevista:

ConJur — Como a regulamentação das delações premiadas pela Lei 12.850/2013 mudou as investigações de organizações criminosas?
Nelio Machado
 — Em primeiro lugar, a terminologia que se tem usado nas novas leis extravagantes no país é absolutamente equivocada. Se a gente fizer um retrospectiva histórica, o Código Penal de 1940 foi concebido ao tempo do Estado Novo, com o mundo em guerra. Ali criou-se o crime de quadrilha, como os americanos também tinham crime de conspiração. Eram crimes voltados a perseguir aqueles com relação aos quais não havia uma configuração de tipicidade clara que pudesse justificar uma perseguição penal. A concepção do crime organizado é uma derivação do crime de quadrilha.

Na verdade, há uma grande imperfeição do ponto de vista dogmático de se considerar tal crime como existente. Nós adotamos o crime organizado como tipicidade própria em razão da Convenção de Palermo, mas sem nenhuma reflexão maior. O Brasil vem seguindo o caminho de leis extravagantes em matéria penal, o que é um equívoco muito grande. O saudoso professor Raul Chaves sustentava que o Direito Penal tem de ser todo compendiado em um único diploma legal, o Código Penal. Não teria que ter Lei de Imprensa, Lei de Segurança Nacional, nem Lei dos Crimes Hediondos.

Até porque a lei foi feita para todos, não para os doutos e para os juristas. Então, a tipicidade do crime de quadrilha não deveria existir, do mesmo modo que a tipicidade do chamado crime organizado também não devia existir. É preciso punir o ato criminoso pelo que ele representa de ação concreta, ou seja, o roubo, o furto, o estupro e assim por diante. Não há nenhuma necessidade dessa etiqueta de organização criminosa. Como também não havia necessidade de criar crimes hediondos. Isso vem de 1990, quando o empresário Roberto Medina foi sequestrado no Rio de Janeiro.

Por isso, criaram a Lei dos Crimes Hediondos, e toda a criminalização maior resultou em insegurança maior, porque o Brasil passou a ter a quarta maior taxa de encarceramento do mundo. E isso não melhorou absolutamente em nada a segurança das pessoas. Mais ainda: começaram a criar regras que, em princípio, implicavam manter por mais tempo as pessoas no cárcere. Quando a pessoa está presa, a perspectiva de melhora é a ideia de que ela possa voltar a alcançar a liberdade.

O Direito Penal estabelece uma sanção, mas ele também tem que te dar a chance de você ter uma reinserção social. O Estado é um vencedor, o condenado é um vencido que está à mercê do Estado. Nós sabemos a realidade das nossas cadeias. Pior, nós sabemos também que 40% aproximadamente da população carcerária no Brasil é composta por pessoas que não foram julgadas ainda em definitivo. E a solução que estão encontrando agora é a pior possível. Vamos julgar depressa para legitimar a prisão provisória em prisão definitiva. O conceito de organização criminosa é equivocado. É preciso punir as ações.

Da mesma forma, eu penso que seria até questionável a tipicidade de lavagem de dinheiro. Porque a lavagem de dinheiro, tal como estão utilizando, é muito mais um exaurimento de um crime anterior, por exemplo, na hipótese da corrupção. Então basta isso. Não é preciso dizer que o que se gastou com dinheiro resultante da corrupção corresponde a um outro crime da lavagem. Aqui há um desconhecimento geral de um princípio básico, que seria o conflito aparente de normas. Vou te dar um exemplo: um talão de cheques. Alguém subtrai de um terceiro, falsifica a assinatura, vai ao banco e desconta o dinheiro que não lhe pertence. Se você olhar com rigor, sem uma perspectiva finalística, dirá tem o crime de furto, tem o crime de falso e tem o crime de estelionato.

Mas não, tem um crime só, que açambarca todos os demais. O Direito Penal que eu aprendi era um Direito Penal humanístico, um Direito Penal em que ao réu primário de bons antecedentes destinava-se uma pena menor e não uma pena completamente descolada do princípio da razoabilidade, que é uma lição que vem desde Cesare Beccaria. Então, a primeira observação que eu gostaria de fazer é que nós deveríamos simplificar a lei penal. Nós sofisticamos muito o Direito Penal, com leis que ninguém domina, com leis que mudam muito, a cada fato de grande repercussão.

Aí vamos chegar à barganha, que outra coisa não é senão a delação. A nossa tradição nunca foi simpática ao instituto da delação ou colaboração premiada. Seria, quando muito, uma mera atenuante da pena. No tempo em que eu comecei a advogar, após o golpe Militar de 1964, o Ato Institucional 5, o réu que procedesse em sua defesa no caminho de dedurar o colega — e existia tortura — era marginalizado do grupo. E em juízo eles se retratavam e apontavam que o comportamento era uma decorrência de constrangimento, de tortura.

Algumas vezes, torturas resultavam em mortes, que eram ocultadas por desaparecimentos. Se a gente voltar na história, os franceses que aderiram ao nazismo eram chamados de “colaboradores”, e essa palavra virou pejorativa. “Alcaguete” também sempre foi considerada uma palavra feia, desde a meninice. Então, quando pensamos que o caminho da justiça é o caminho da delação e fazemos com que o Joaquim Silvério dos Reis seja mais importante que Tiradentes, alguma coisa está errada. Em verdade, o que se tem é uma grande desordem.

E, subitamente, os comentaristas que nada entendem de lei, mas que de alguma forma se empolgam com a punição, passaram a ter mais voz. Aí há outra incoerência, porque tempos atrás, quando se falava em Direito Penal nos eventos internacionais, nos estudos acadêmicos, afirmava-se o abolicionismo. O Direito Penal não serve para nada, faz com que as pessoas fiquem muito piores do que quando entraram na cadeia. Desde 1215, o mundo foi evoluindo com a garantia do devido processo legal.

Tivemos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Revolução Francesa, o iluminismo, a Carta da ONU, a Ideia Básica, o Pacto de São José, a ideia de que todo mundo é presumivelmente inocente. E a Constituição é muito clara quanto a isso, dizendo que se presume a inocência e a prisão só se legitima após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Todo esse arcabouço normativo, ideológico, correto, progressista, que representou uma espécie de resposta aos anos de chumbo, de repente é transformado pela prática judiciária, de juízes combatentes da criminalidade e que não julgam, mas participam da investigação – outra excrescência do Brasil.

Nos EUA, inexiste a figura do juiz que homologa a delação. O que existe lá é uma negociação entre acusação e defesa. É uma aberração jurídica que o juiz chancele uma colaboração firmada entre as partes. O juiz tem de ser neutro, não pode ter lado. O juiz não precisa saber absolutamente nada sobre coisa alguma. Ele tem que deliberar conforme a sua consciência. Outro problema gravíssimo que nos assola é a permanência do chamado juiz monocrático.

O juiz de primeiro grau tinha um controle dos órgãos que lhe são superiores, mas nos últimos tempos, em razão também de uma publicidade opressiva, o tribunal, para não se indispor com a população, mantém a decisão e os outros tribunais, a pretexto que estão distantes e que não podem examinar provas, ou porque a decisão isolada não pode ser passível de exame, não examinam ou se examinam, endossam aquela decisão anterior.

Ou seja, quando se diz aqui que tem várias instâncias é uma falácia. Não tem várias instâncias no Brasil, tem um juízo que decide sozinho e que participa da investigação, logo não tem o requisito da imparcialidade. Na operação satiagraha, eu defendi o Daniel Dantas. E o relator do Habeas Corpus do Supremo Tribunal Federal foi o o ministro Eros Grau. E ele verbera contra essa situação dizendo mais ou menos o seguinte: “Bom, eu já escutei tudo sobre a sua vida, eu chancelei a investigação, eu sei dos seus telefonemas, dos seus contatos, das suas ligações, e eu estou absolutamente convencido da sua culpa, mas agora eu vou lhe interrogar e quem sabe em alguns minutos você me convença que eu estou errado”. E aí ele propõe como melhor solução a sorte nas ordálias, a prova de fogo medieval.

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