Lançado no ano passado, “Roupa de Baixo” é um documentário de 13 minutos dirigido por Lara Dezan e roteirizado por Alexandre Gennari. Ganhou os prêmios de Melhor Curta do Canal Brasil, Coelho de Ouro como Melhor Curta Nacional do Festival Mix Brasil, além de ter sido selecionado para a Mostra de Cinema de Tiradentes.
Conta a história de uma trabalhadora rural que se chamava Benedito Justo e hoje se apresenta como Suely. Lara conseguiu entrevistá-la junto com seus familiares e os moradores de São Luiz de Paraitinga, cidade no interior de São Paulo, no Vale do Paraíba.
É um filme sensível sobre a realidade e o passado de Suely, incluindo as dificuldades de se assumir como mulher no meio rural e pobre de uma cidade pequena. O nome “Roupa de Baixo” vem de um velho hábito de Suely, que passou anos vestindo roupas de mulher sob as roupas de homem. Num determinado momento, ela fez em si mesma uma cirurgia que mudaria sua vida e a das pessoas que conhece.
O DCM entrevistou a diretora do curta documental.
Como essa história da Suely chegou pra você?
Lara Dezan: O roteirista Alexandre Gennari foi quem me apresentou a história dela. Em uma de suas viagens a São Luiz do Paraitinga, ele viu a Suely no Mercado Municipal e foi conversar com ela para saber sobre sua vida. Ele fez algumas gravações de conversas iniciais e mostrou para a produtora Juliana Lira, que me chamou pra dirigir.
Fui conhecer pessoalmente a Suely. O primeiro encontro foi apenas uma conversa informal com Suely e sua família, sem gravação. Ao vê-la, queria entender melhor a história dela para saber o que aconteceu com a própria Suely.
Quando voltamos para gravar, a Suely desistiu e não quis mais falar no documentário. Depois, passamos dois dias, dos três que ficamos em São Luiz do Paraitinga para gravar, apenas registrando depoimentos de pessoas próximas a ela na cidade e da sua família. Estávamos certos de que não teríamos da dela.
Fiquei muito incomodado por não ter o depoimento dela até aquele momento. No entanto, não queríamos insistir por se tratar de história delicada. No último dia ela acabou mudando de ideia e quis gravar conosco.
Como vocês fizeram o filme?
O curta foi feito sem nenhuma verba. Essa falta de recursos acaba sendo um problema para mandá-lo pra fora. No discurso de um dos participantes estrangeiros no Festival Mix Brasil, evento que rendeu o prêmio de Melhor Curta do Festival e Melhor Curta do Canal Brasil ao Roupa de Baixo, ele disse que desconhecia o quanto o Brasil está atrasado em relação aos direitos iguais para a comunidade LGBT. Disse que falta naturalidade com algo que obrigatoriamente deveria ser tido como natural. Essa falta de informação é sinônimo do preconceito que afetou a vida da Suely.
Falta material sobre o tema e falta esclarecimento. Se conseguíssemos mais visibilidade e apoio, faríamos um longa-metragem que poderia ter uma divulgação maior sem ficar restrito ao circuito de festivais.
Como é a relação dessa pequena comunidade no interior com a Suely?
A Suely se isolou com sua mãe e irmã na zonal rural da cidade. Não há uma vida social. Ela e sua família vivem em uma realidade distanciada e absolutamente a margem. Nem Suely nem a cidade tem noção do que ela fez foi um ato corajoso ao assumir sua mudança.
Não identifiquei nenhuma história de violência, no sentido mais óbvio que pensam da palavra, contra a Suely. Mas ouvi relatos de homens que trabalhavam com ela na roça e mexiam com ela. Eles assediavam e apertavam a bunda dela. Isso também deveria ser considerado como uma violência,, mas as pessoas ainda não enxergam dessa forma.
Ninguém demonstrou um “discurso de ódio” aberto ou alegou ter algo contra as escolhas de Suely, mas existe o preconceito velado sim. Num artigo da Laerte, sobre o filme A Garota Dinamarquesa, ela diz sobre as trans que “são pessoas que não precisam de tolerância, precisam de afeto mesmo, como todo mundo”. E isso resume bem o que aconteceu. Não há uma compreensão do que a decisão de Suely, de se assumir como mulher na zona rural há 40 anos, representa. Ela inclusive não quis ver o curta e nem ir aos festivais. A Suely optou mesmo pelo distanciamento.
Ela tem ou teve algum namorado?
Não, nunca teve. Viveu em isolamento total.
A Suely sempre coloca um “a gente” em suas frases. Ela fala como se o Benedito e Suely fossem entidades distintas em acordo. O que você achou isso?
De fato todas as frases da Suely começam com “a gente”. Quando a indaguei sobre o motivo, não obtive resposta. Parece que, de fato, ela se expressa com a Suely e o Benedito juntos. Mas não acho que existe um acordo entre ambos, porque são outras pessoas que obrigam o Benedito a continuar existindo na vida dela. Existe apenas a Suely.
Quando exigiram na escola que a Suely apresentasse os documentos do Benedito, isso acaba pressionando. Não é a toa que ela queimou os documentos. Isso é a prova de que não existe uma relação de acordo entre Suely e Benedito. São os outros que não deixam o Benedito “ir embora”, sabe?
A mãe a trata como o “homem da casa” e, com exceção da enfermeira que a socorreu quando houve a automutilação, todos os outros se referem a Suely como “ele”. Não é a toa que a Suely ficou tantos anos vestindo roupas de mulher por baixo das roupas de homem.
Você acha que a automutilação de Suely demonstra autonomia na sexualidade?
Acho que se apresentar como mulher, usar o nome de Suely, vestir socialmente roupa de mulher e exigir ser respeitada são atitudes de busca de aceitação. A automutilação, na minha opinião, é tristeza e desespero, é violência. O preconceito é uma violência diária e não é a toa que o índice de automutilação, de isolamento e suicídio é tão alto entre as trans.
Ela continua com o trabalho braçal na roça ou ficou marginalizada?
Ficou marginalizada. Os moradores da cidade dizem que foi uma própria opção da Suely, que, como mulher, não queria mais fazer o trabalho. Não sei até que ponto o problema foi achar que trabalho braçal “é coisa de homem” ou se como ela era tratada nesse meio foi o real motivo. Sei que ela não tem renda, vive distante da cidade apenas com a mãe e a irmã, sem assistência alguma.
Como foi o contato com o pessoal que mora lá e depois com ela?
Ao ter contato com o depoimento das outras pessoas, sentimos com mais clareza a influência que a cidade tem na vida da Suely e em como ela se distanciou de todos lá. Ficou nítido como a maior parte dos moradores não tinha uma aceitação natural em relação às escolhas pessoas dela. Alguns a tratavam como “lenda” ou até mesmo uma personagem…
Pudemos registrar um pouco sobre como é complexo ser uma transexual, sobretudo em uma cidade pequena e rural. Ela sempre viveu sob os olhares e julgamento dos outros. É muito importante mostrar essa situação para que as pessoas reflitam e passem a respeitar as escolhas dos outros. Como a própria Suely diz: “Cada um tem um gosto. Toca seu barco, ué…”.
Havia ali na cidade ignorância, falta de informação, e um preconceito velado de muita gente. Para a maioria, a Suely sempre será o Benedito que trabalhava na roça e resolveu “de repente” usar roupa de mulher.
Essa história tão rica consegue impactar em 13 minutos. Mas você não acha que o tema poderia render um longa-metragem, como o filme Garota Dinamarquesa?
Eu estou muito satisfeita com o resultado do curta, porque a recepção dele está boa, ganhando inclusive prêmios. Houve uma preocupação nossa em contar a história complexa, e até violenta, da Suely. Fizemos isso de uma forma delicada e subjetiva, para que fosse censura livre e, dessa forma, acessível ao maior público possível.
Essa temática precisa ser divulgada porque parte do preconceito vem da ignorância. O audiovisual tem uma responsabilidade grande e nós deveríamos difundir o conhecimento e ajudar na construção de um mundo melhor e com mais amor. Isso ficou muito claro quando uma criança veio falar comigo depois da exibição do curta na Mostra de Cinema de Tiradentes. Ela veio me dizer como o filme a ajudou a entender melhor o que é ser trans.
A criança percebeu que não existe problema nenhum com isso, e que há também diferença entre orientação sexual e a questão de gênero. Não faz sentido ter preconceito.
Qual será o legado de Suely ao espectador de Roupa de Baixo?
A dimensão desse legado só o tempo vai dizer. Mas sua história, que foi exibida no curta pela primeira vez em novembro do ano passado, já teve impacto em algumas pessoas. Pessoas com opiniões que considero equivocadas em relação à comunidade LGBT podem discutir melhor o assunto. Muitos nos deram um retorno dizendo que o curta agregou algo positivo em suas vidas. O que me entristece é saber que o curta ainda não mudou a realidade da própria Suely, mas ele pode mudar para melhor a vida de tantas outras Suelys no mundo.
Underclothes_Roupa de Baixo_Trailer from Lira Filmes on Vimeo.