Publicado originalmente no Jornalistas pela Democracia:
Por Moisés Mendes
Continuam escolhendo quem pega vaga na UTI. Em muitas cidades, ainda tem mais gente na fila do que leitos disponíveis, apesar da redução no número de internados nos últimos dias.
É da vida e, em situações semelhantes, tem sido assim em todo o mundo. Mas no Brasil o horror nos hospitais é o cenário mais dramático criado por omissões e ações deliberadas do governo.
As convenções escritas ou não indicam que a preferência é geralmente pelo paciente mais jovem. Ele, na média, é quem tem condições de tirar melhor proveito dos recursos oferecidos.
O mais jovem só irá perder para quem tem mais idade se, no confronto das condições de cada um, já estiver com problemas sérios agravados por comorbidades e um quadro geral bem mais grave.
Não há muito o que fazer para mudar esse critério básico, ou as equipes passariam horas debatendo que o jovem não tem filhos e que o idoso ao lado dele sustenta ou ajuda a sustentar muita gente.
Poderiam argumentar, sociologicamente, que outros fatores talvez favorecessem um idoso. Mas a sociologia e os afetos não entram nessa escolha.
Dados considerados subjetivos não são relevantes numa hora dessas, nem se o jovem é pilantra ou bandido e o idoso é um homem bom. A avaliação passa pela condição física, na urgência daquele momento.
Ninguém vai avaliar QI ou produção intelectual, ou a índole de um ou de outro, ou a contribuição de cada um para o bem da humanidade.
Não é o que está na cabeça e na alma dos pacientes que pode assegurar vantagens. O corpo é o que conta. E não há nem como querer discutir se corpo e mente são afinal a mesma coisa.
É uma escolha cruel, porque nessas circunstâncias a pessoa de mais idade entra num jogo sem muitas chances, se o outro ao lado é um jovem saudável.
Então imaginemos o seguinte. Em 1974, no pico de uma epidemia de meningite (que a ditadura acobertou), um jovem e um idoso chegam em condições preocupantes ao hospital.
A meningite atingia mais as crianças, mas diziam que os adultos não estavam livres da doença, principalmente os idosos.
Nessa cena imaginada, lá em 1974, o jovem e o idoso ficam lado a lado na emergência, e os médicos se reúnem para tomar a decisão. Há apenas uma vaga na UTI.
O jovem tinha 19 anos, era forte e começava a construir um histórico de atleta. O idoso tinha 67 anos, sem doenças crônicas, mas seu estado naquele momento era bem mais delicado, quase grave. E era um idoso.
Tecnicamente, a decisão nesse caso não é muito difícil. O jovem vai para a UTI, com todos os recursos, e o idoso fica numa maca na emergência (ser tiver maca), para que tente sobreviver com os equipamentos, a medicação e os profissionais disponíveis.
É o que está acontecendo todos os dias em algumas UTIs do Brasil, com o aumento da internação de jovens com Covid-19, muitos em estado grave, que disputam o tratamento intensivo com idosos em situação difícil.
No cenário imaginado de 1974, essa escolha poderia ter salvo um jovem que se chamava Jair Messias Bolsonaro.
Na ficha do idoso que estava ao seu lado e teria perdido a disputa, poderia ser lido: Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho.
E assim poderia ter sido. Bolsonaro tinha 19 anos em 1974. Niemeyer estava com 67 anos.
Os critérios de escolha para saber quem tem mais chances de viver e contribuir por mais tempo para a humanidade poderiam, em 1974, colocar lado a lado duas pessoas definidas com palavras começadas pela letra g. Um genocida e um gênio.
Em 1974, os mesmos critérios da escolha do mais apto a sobreviver poderiam ter nos tirado o direito de desfrutar da arte, da sabedoria e da grandeza humanista de Niemeyer durante mais de século de vida.
Mas na vida real Niemeyer morreu em 5 de dezembro de 2012, dez dias antes de completar 105 anos. Tem o reconhecimento mundial como gênio da humanidade.
E Bolsonaro, aos 66 anos, é reconhecido mundialmente como um dos genocidas do século 21.