Eduardo Guimarães
Nas últimas semanas, grande parte da comunidade psicanalítica esteve em polvorosa por conta do lançamento do livro Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, de Pasternak e Orsi. Nesse livro, os autores declaram que a psicanálise, entre outros saberes, é pseudociência. Diversos psicanalistas já se manifestaram, mas muitas reações não levaram em consideração o que era dito textualmente nesse manifesto positivista.
Apesar de acreditar que os ânimos já foram acalmados, decidi ler o que os autores têm a dizer sobre ciência e psicanálise. Não sou tão rápido, é verdade, para reagir a grandes polêmicas – porém quem disse que estou com pressa? Posto isso, vamos ao que interessa.
O livro Que bobagem! não é um texto bem escrito. Os subtítulos não informam adequadamente o assunto que será abordado e não seguem uma hierarquia clara entre eles. Embora seja de divulgação científica, esse livro peca pela ausência de rigor no uso de termos e conceitos. Em algumas situações, diferentes argumentos, utilizados para defender uma mesma tese, são, senão contraditórios entre si, pelo menos divergentes a ponto de colocar em suspeita a certeza que atravessa o texto de cabo a rabo. Vejamos, agora, de que maneira a ciência é apresentada por Pasternak e Orsi.
De acordo com os autores, a ciência é a “melhor descrição possível da realidade factual” (p. 8). Essa declaração é, no mínimo, problemática. Em primeiro lugar, é necessário esclarecer qual critério define a melhor e a pior descrição da realidade. Se, por exemplo, o critério for estético ou se levar em consideração a complexidade da realidade, a melhor descrição não é a ciência, e sim a poesia. Em segundo lugar, também é preciso delimitar o significado da expressão “realidade factual”.
A realidade factual é aquela que pode ser apreendida diretamente pelos sentidos? Se sim, então a realidade apreendida mediante instrumentos científicos, como o microscópio, o telescópio e o acelerador de partículas, deve ser entendida como realidade factual? E o que dizer da paleontologia? Nunca ninguém viu os dinossauros, mas a comunidade científica infere sua existência em um passado remoto a partir da análise de seus vestígios.
A adoração da prática científica também vai se manifestar em outro momento, quando os autores declaram que “seguir usando impressões, vivências e narrativas como guias, quando há informação científica disponível, é não só perigoso como também irresponsável” (p. 20). A ciência torna-se, assim, um guia definitivo de orientação ética e política, tanto nas questões coletivas como nas individuais – o que é um absurdo! Para diversas questões, a ciência é incapaz de estabelecer um veredito universal e aplicável a toda e qualquer situação. E nem é preciso mencionar que na escolha amorosa, por exemplo, diversos fatores nada científicos pesam muito mais que um tratado de microbiologia.
A função da ciência é outro aspecto problemático. Sua função, segundo Orsi e Pasternak, é “filtrar nossa percepção de mundo e eliminar (na medida do possível) os erros provocados por nossas deficiências e falhas cognitivas” (p. 11). A ciência, de fato, não deixa de ser um filtro da percepção humana, mas declarar, a partir disso, que sua função é eliminar os erros humanos é um salto que conduz a equívocos.
A atividade científica avalia o certo e o errado ou o verdadeiro e o falso somente daqueles fenômenos que foram anteriormente submetidos ao domínio da ciência. Dito de outra maneira: a ciência não se pronuncia a respeito do que não for científico. Portanto, em primeiro lugar, é necessário estabelecer a distinção entre o que é científico e o que não é científico para, somente em seguida, estabelecer, naquilo que é científico, o que é verdadeiro e o que é falso. O que não é científico não é nem verdadeiro nem falso – apenas não é científico.
E isso nos leva a outro problema: a distinção entre ciência e pseudociência. Toda pseudociência não é ciência, mas nem toda atividade exterior à ciência é pseudocientífica. Uma atividade pseudocientífica é uma atividade epistêmica exterior aos limites científicos que pretende se passar por científica – por exemplo, o chamado “tratamento precoce” utilizado para combater a covid-19. Mas existem atividades epistêmicas exteriores aos limites científicos que não pretendem se passar por científicas. Nesse caso, condená-las como pseudocientíficas é ou erro ou má-fé.
O problema da demarcação científica, tantas vezes evocado por Pasternak e Orsi, é uma faca de dois legumes, como diriam os Mamonas Assassinas. Por um lado, estabelece a exterioridade da atividade científica. Nessa exterioridade estão localizadas aquelas atividades que não podem ou não são submetidas aos mesmos critérios científicos, mas não deixam de ser atividades que produzem alguma forma de saber.
Por outro lado, a demarcação também aponta para os limites da atividade científica, ou seja, até onde ela pode ir. Esse segundo aspecto foi sumariamente negligenciado pelos autores. A ciência não pode se pronunciar sobre tudo porque nem tudo pode ser submetido ao crivo científico. Quando ocorre essa transgressão, então estamos diante da sacralização da atividade científica.
As diferenças internas da definição de ciência são praticamente inexistentes, segundo os autores. Declaram que as psicoterapias deveriam estar submetidas às mesmas regras e princípios fundamentais das ciências físicas, biológicas e da saúde. Justificam essa defesa alegando que o dualismo mente e corpo não se sustenta mais.
Sim, é verdade: o dualismo de substâncias não se sustenta mais cientificamente, mas nem por isso existe consenso em afirmar que todos os fenômenos psicológicos podem ser descritos enquanto fenômenos neurofisiológicos. Existem pontos de vista científicos que sustentam modelos de mente humana cujo funcionamento preserva alguma autonomia em relação ao funcionamento cerebral. E, com isso, chegamos à psicanálise.
De acordo com os autores, o fundamento da psicanálise é o inconsciente. O inconsciente seria uma evidência empírica cuja influência poderia ser percebida somente pelo psicanalista. Esse privilégio do psicanalista seria a fonte dos maiores danos que porventura a prática psicanalítica poderia provocar em seus pacientes. Enfim, nada mais falso. O inconsciente não é uma evidência empírica, e sim uma hipótese clínica inferida a partir de suas formações, como os sonhos, os atos falhos e os sintomas. Sua influência não é percebida somente pelo psicanalista – e sua interpretação pode ou não ser aceita pelo paciente.
O psicanalista, ao contrário do que afirmam os autores, não é mestre de um saber oculto ao paciente, mas é aquele que vai proporcionar que o saber do próprio paciente possa ser analisado. Dito de outra maneira: o psicanalista está menos para um professor universitário e mais para um Sócrates em Atenas.
Isso nos leva àquela avaliação dos autores que dizem que o psicanalista está sempre certo: se o paciente aceita sua interpretação, está certo; se o paciente a recusa, também está certo, pois se trata de resistência. Novamente, isso é falso. O psicanalista elabora interpretações ao longo de uma análise, mas as coloca a prova a todos os instantes. Por isso, dificilmente estabelece interpretações definitivas, pois elas podem ser mais bem elaboradas ou mesmo corrigidas ao longo do tratamento.
Uma das críticas mais sérias dirigidas contra a psicanálise – sérias não porque fundamentadas, e sim porque perigosas – diz respeito ao implante de memórias inexistentes. Os autores tomam dois casos nos Estados Unidos em que se verificou o “implante” de memórias inexistentes em pacientes. No entanto, nenhum dos dois casos ocorreu em contexto psicanalítico. Um deles utilizou drogas, enquanto o outro utilizou hipnose.
Os próprios autores reconhecem que não se tratam de práticas psicanalíticas, mas de práticas baseadas na evidência do inconsciente psicodinâmico (leia-se: psicanalítico). Por isso, a psicanálise também poderia provocar danos aos seus pacientes. A desonestidade desse argumento é enorme! Seria o mesmo que condenar a microbiologia pela possibilidade de seus cientistas utilizarem seus conhecimentos para construir armas biológicas de destruição em massa.
A apresentação da psicanálise feita pelos autores, enfim é no mínimo desonesta. Desonesta não somente porque é falsa, mas também porque a obra freudiana sequer é mencionada pelos autores, o que nos faz pensar na seguinte pergunta: os autores leram Freud? Somente em um único momento Freud é mencionado e citado, mas de maneira totalmente isolada e descontínua em relação aos parágrafos anteriores e posteriores. Portanto, aqui fica a pergunta: como é possível que dois autores condenem com tanta segurança um território epistêmico que sequer conhecem?
Afinal, depois de tudo isso, a psicanálise é ciência? Esse debate está em aberto. Se considerarmos a física como modelo de disciplina científica, não: a psicanálise não é ciência. Se considerarmos que existem disciplinas científicas irredutíveis ao modelo proposto pela física, como a antropologia, talvez sim, talvez não.
A meu ver, a psicanálise não é nem pretende ser uma ciência como a física. Provavelmente, a psicanálise esteja na fronteira entre o científico e o não científico. Melhor ainda: talvez seja uma atividade epistêmica exterior à ciência, mas que paradoxalmente não deixa de comparecer a determinados debates científicos. Mas pseudociência? Não, de forma alguma.
A psicanálise, pelo menos nos moldes como é praticada hoje, não somente não quer como também não precisa da chancela do modelo científico da física. A psicanálise caminha com suas próprias pernas – e, diferentemente de Pasternak e Orsi, sabe que com essas pernas não pode abraçar o mundo, mas pode percorrer alguns caminhos ao lado da antropologia e da matemática, assim como pode abrir caminhos mais interessantes para aqueles que adoeceram por acreditar piamente em uma (nova) forma de devoção.
Originalmente publicado por Outras Palavras
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