Um rosto distante se apagando no meio da multidão

Atualizado em 26 de agosto de 2013 às 0:51

Uma história de amor pelo escritor cubano Fabio Hernandez.

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“Sabe, liguei o rádio do carro naquela estação e pensei: a próxima música que tocar vai ser pra nós”, ela disse. “Tocou uma música que dizia. Dos nossos planos é que tenho mais saudade. Onde está você agora além de aqui dentro de mim? Agimos certo sem querer, foi só o tempo que errou. Vai ser difícil sem você porque você está comigo o tempo todo.”

Os olhos dela estavam úmidos. Ela falava com sofreguidão, com intensidade, e isso não era comum nela. Quieta, discreta, poucas palavras. A pressa com que falava parecia indicar que ela sabia que já não tinham tanto tempo assim para conversas daquela natureza. Era a última oportunidade talvez para olharem para trás e falarem do que representaram um para o outro, ou uma das últimas. Há tempo para chegar e há tempo para partir, está escrito no Eclesiastes, e para eles tinha chegado a hora de partir. Ele não conhecia aquela música. O repertório musical dos dois era diferente, e num determinado momento deixaram de compartilhar as canções que agradavam a um e outro. Ele foi procurar depois a música da qual ela falara. Vento no Litoral. Legião. “Sei que faço isso pra esquecer, eu deixo a onda me acertar, e o vento vai levando tudo embora.”

“Recebi um email do advogado”, ele disse. “Ele escreveu que tinha sido um final feliz. Final feliz, eu ri ao ler. Final feliz. Antigamente final feliz era, sei lá, bem, não era isso. Não o que ele quis dizer. Que minha proposta de partilha tinha sido aceita, e que estávamos prontos para ir ao juiz para selar a separação.”

“Você”, ela disse. “Você preencheu todos os meus céus. Olhos de estrela nunca mais, nunca mais.”

“Olhos de estrela. Você tinha olhos de estrela. No seu quarto de moça você tinha olhos de estrela.”

Quarto de moça. Rubem Braga. Era um dos textos preferidos dele. Quarto de Moça. Rubem Braga narrava o encontro com uma mulher que ganhara o mundo, e com isso dinheiro e poder e celebridade, mas perdera seu quarto de moça humilde no qual sonhara tanto. Rubem dizia que, se pudesse lhe dar um presente, reconstruiria aquele quarto para ela. Quarto de moça. Ele se lembrava do quarto de moça da mulher com a qual tivera, nas palavras do advogado, um final feliz.

“Eu não consegui fazer você ser feliz, e me sinto fracassada por isso, e isso me dói tanto, tanto”, ela disse.

“Eu também não consegui te fazer feliz, mas acho que significou uma vitória no fracasso. Derrotas podem ser esplêndidas. A nossa acho que foi. Não tiramos a essência um do outro. A tristeza nos uniu, não só ela, é verdade. O sexo era bom, e como era, mas a tristeza foi talvez a nossa conexão mais forte. Não perdermos o que tínhamos de mais genuíno é um triunfo no fracasso.”

“Seus olhos. Seus olhos são tão tristes. Me sinto culpada. Sempre me sinto culpada, você sabe. E se eu tivesse feito …”

“Nós fizemos o que tínhamos que fazer. Nós lutamos. Nós guerreamos, nós fomos guerreiros, os dois, não só eu, você também. Mesmo quando caídos nós combatemos de joelhos pelo nosso amor, por nós dois, e apenas aconteceu que fomos derrotados. Li num livrinho que você me deu que o que importa não é o resultado, mas a luta, a intenção, a entrega, e então nós, sei lá, nós tentamos, e então está tudo bem.” O livrinho ao qual ele se referiu era o Gita.

“Agimos certo sem querer”, ela cantou. “Foi só o tempo que errou.”

“Você trouxe uma música, eu trago outra. Desenhos no Jornal.”

“Ah, essa música não. É tão triste.”

“A arte é triste. Uma vez escrevi isso. A alegria não produz nada que preste na arte. Gosto daquele verso. O final. Um rosto distante se apagando no meio da multidão.”

E então eles se despediram, e então eles eram um era para o outro, e para sempre, um rosto distante se apagando no meio da multidão.