Universidade que emprega Didier Raoult abre investigação sobre estudos de cloroquina para Covid-19

Atualizado em 16 de junho de 2021 às 9:50
Didier Raoult sugere que vacinação pode provocar sintomas de Covid-19. Foto: IHU Mediterranée-Infection/YouTube

A Universidade Aix-Marseille, responsável pelo instituto dirigido por Didier Raoult, abriu uma investigação sobre a integridade dos estudos científicos publicados pelo professor e sua equipe sobre o tratamento da Covid-19. O médico é defensor da cloroquina. O medicamento é ineficaz contra o coronavírus, segundo estudos da OMS (Organização Mundial da Saúde).

O anúncio foi feito nesta terça-feira, mas a investigação começou em junho do ano passado.

De acordo com a universidade, a investigação é dividida em duas fases. A primeira, já concluída, se concentra sobre os trabalhos conduzidos ao longo de 2020. A segunda etapa investiga os trabalhos desenvolvidos em 2021.

A universidade abriga o Institut Hospitalo-Universitaire Mediterranée Infection (IHU), dirigido por Raoult.

A Universidade Aix-Marseille afirmou à imprensa francesa que “a investigação, conduzida por cientistas independentes, requer tempo, seriedade e rigor” e que “a comissão de investigação continua estendendo seu campo de investigação sobre o ano atual”.

De acordo com a imprensa francesa, a universidade se recusou a fornecer as conclusões da primeira etapa da investigação.

“A criação da comissão de investigação dá sequência a um pedido de Didier Raoult, que a solicitou ao presidente da universidade com o objetivo de constatar a integridade de seu trabalho”, diz o IHU.

A independência da investigação suscita as dúvidas de Elisabeth Bik, especialista em integridade científica.

“Não está claro o quão ‘independentes’ os especialistas serão”, publicou em sua conta no Twitter. “É muito raro que uma investigação de universidade por má conduta de um de seus professores estelares resulte no apontamento de culpa,” observa.

“Geralmente, a universidade conclui que erros foram cometidos, mas não má conduta”, explica.

O Institut Hospitalo-Universitaire de Marselha (França), sob tutela da Université Aix-Marseille. Foto: IHU Mediterrannée Infection.

Pressão

Se a independência da investigação da Université Aix-Marseille suscita dúvidas, fora do estabelecimento Raoult é criticado pelo maior órgão de pesquisa do país, o Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS).

Em comunicado divulgado no último dia 7, o Comitê de Ética do CNRS repudia o processo movido por Didier Raoult e seus colaboradores contra os pesquisadores Elisabeth Bik e Boris Barbour, que revelaram anomalias nos estudos do defensor da cloroquina para a Covid-19.

O CNRS considera que “a denúncia feita por Didier Raoult e Eric Chabrière dá sequência a ameaças que eles (ou seus apoiadores) fizeram nas redes sociais. Esses procedimentos consistem em estratégias de intimidação inadmissíveis”.

O Comitê de Ética do CNRS “expressa sua preocupação diante de tais práticas, que devem ser severamente condenadas”.

A instituição francesa faz referência ao processo por iniciativa de Raoult e seu colaborador por suposto “assédio” de Bik e Barbour quando a cientista publicou na plataforma PubPeer uma série de questionamentos sobre a metodologia empregada em diversas publicações de Raoult e seus colegas.

Boris Barbour, administrador da plataforma virtual e diretor de pesquisa do CNRS, foi então acusado pelo professor defensor da cloroquina para a Covid-19 de ser cúmplice de Elisabeth Bik por ter hospedado os questionamentos em seu site.

Na nota, o CNRS lembrou que Elisabeth Bik, “especialista em vacinas e microbiomas, identifica há alguns anos más condutas na pesquisa acadêmica”.

“Os artigos científicos tornados públicos são destinados a transmitir os resultados da pesquisa e se tornar objeto de discussão na comunidade de pesquisadores. Foi sempre assim, pela acumulação e questionamento dos resultados científicos, que a ciência progrediu e vai continuar”, afirma.

“A partir do momento em que ela se baseia em dados factuais tangíveis, a discussão das hipóteses e o questionamento dos procedimentos de prova fazem parte da atividade normal dos pesquisadores. Ao pedir esclarecimentos a Didier Raoult e Eric Chabrière sobre os artigos que eles escreveram, Elisabeth Bik e Boris Barbour apenas fazem seu trabalho”, diz.

“A controvérsia é a atividade científica, a partir do momento em que ela obedece a regras do debate intelectual e em que ela se baseia em fatos objectiváveis”.

O Comitê “lamenta a judicialização progressiva das questões de integridade na pesquisa”.

No dia primeiro de junho, a ENS-PSL, escola de ensino superior mais renomada do país, reagiu em repúdio ao processo de Raoult e Chabrière contra Bik e Barbour.

“Trata-se claramente de uma tentativa de judicialização do debate científico para fins de intimidação, o que é inaceitável”, disse a Ecole Normale Supérieure, em nota.

A ENS-PSL afirma que “o debate entre pares é o fundamento da verdade científica e as instituições que a protegem (estabelecimentos, órgãos públicos e sociedades de conhecimento) são guardiãs, mais do que um tribunal”.

“Se os comportamentos pessoais dos pesquisadores têm a ver com o direito geral, como o de cada um, e não da ciência, a confusão de ordens – entre processos judiciais e conflitos científicos – prejudica a todos; à pesquisa de maneira geral e à confiança que nela é feita”.

Em entrevista ao DCM, a cientista holandesa, hoje nos Estados Unidos, afirma não ter recebido nenhuma notificação judicial do processo movido por Raoult. Elisabeth Bik diz, no entanto, que desde então recebe uma onda de ameaças de prisão.

Ela afirma que Chabrière, colaborador de Raoult, chegou a divulgar seu endereço pessoal nas redes sociais.

Polícia

As suspeitas em torno da integridade do instituto dirigido por Raoult vão além do debate científico.

Como o DCM informou, a polícia francesa realizou um mandado de busca e apreensão no IHU por suspeita de conflitos de interesse e desvio de recursos públicos.

Dirigido por Didier Raoult (à direita), sem mascara, o IHU se tornou um foco de contaminações de Covid-19 em março e abril deste ano. Foto: IHU Mediterrannée Infection

Ídolo de Bolsonaro, Didier Raoult é alvo de denúncias de charlatanismo por conselhos de Medicina franceses que apuram a integridade do professor em sua defesa da cloroquina contra a Covid-19.