Urnas eletrônicas, razão cínica e negacionismo. Ou conspiração? Por Lenio Streck

Atualizado em 15 de julho de 2021 às 9:15

Publicado na ConJur

Hélio Negão e Jair Bolsonaro

Por Lenio Luiz Streck

O ministro Gilmar Mendes teve uma sacada genial. Como já não existem argumentos que convençam terraplanistas sobre o tema “urna eletrônica”, o ministro partiu para a ironia, dizendo “Helio Negão e Bia Kicis eleitos são a prova de que a urna eletrônica não tem fraude”.

Bingo. Pelo jeito, o ministro Gilmar se deu conta de que, nestes tempos de “tudo vira narrativa”, a velha tese de que “contra fatos não há argumentos” está superada pela fake-tese de que “contra argumentos não existem fatos“.

Bom, Nietzsche já havia instalado o niilismo ao dizer que “não há fatos; só existem interpretações” (ao que Eco contra-argumenta dizendo: seria ele mesmo, Nietzsche, uma interpretação?). Nietzsche, o mesmo quem, dizem, tinha medo de vaca. Mas a vaca não é uma interpretação?! (Aqui, o estagiário levanta a plaquinha para avisar que é uma piada.)

Peter Sloterdijk contrapõe o bem-humorado kynicism grego, por vezes mal-educado, ao cinismo moderno. E propõe uma crítica da razão cínica (Kritik der Zynischen Vernunft). Genial.

E como ele faz isso? Ele pega a clássica frase de Marx “Sie wissen das nicht, aber sie tun es” (Eles não sabem o que fazem, mas fazem mesmo assim), para “eles sabem o que fazem e continuam fazendo do mesmo modo”. Isto é: a pessoa sabe muito bem da falsidade, tem plena ciência de um determinado interesse oculto, mas, mesmo assim, não renuncia à falsa tese.

Isto é: mesmo sabendo que a urna eletrônica é confiável, etc, etc, continuam a dizer que é corrompível. Isso é cínico. Por isso precisamos de uma crítica a essa “razão cínica”. Talvez o ministro Gilmar tenha colocado os pressupostos iniciais para essa construção tupiniquim da Kritik der Zynischen Vernunft. Desvelar o cinismo dos cínicos é tarefa de quem acredita que fatos existem. E importam. Eu sou daqueles que acredita em fatos. Aliás, de há muito inverto a frase clássica de Nietzsche “não há fatos, só há interpretações” para “só existem interpretações porque existem fatos”.

Só um contra cinismo para mostrar a um negacionista que vacinas funcionam, que a terra é esférica e coisas desse quilate.

Voltando à urna eletrônica: como teria sido a conspiração para que Bolsonaro continue a sustentar que as eleições passadas foram fraudadas? Afinal, ele venceu essas eleições. Fosse o caso de fraude, por qual razão os fraudadores teriam deixado que ele ganhasse? Desculpem-me, mas há limites nas discussões. Há limites para tudo. Até para o ridículo. Fatos existem, sim.

Afinal, para não alongar a conversa, por qual razão os conspiradores (fraudadores) deixaram Hélio Negão e Bia Kicis (sem contar uma infinidade de deputados que hoje denunciam a “fraude da urna eletrônica”) se elegerem e não alteraram o algoritmo? Incompetentes esses fraudadores. Poxa. Fizeram uma fraude e deram um tiro no pé?

É muita conspiração. E uma conspiração tiro-no-pé.

O mais “brilhante” disso tudo é que, se há uma tese conservadora quase que por definição, é o senso de realidade. Os conservadores à brasileira (ou assim auto proclamados), porém, distorcem a realidade para encaixá-la nas narrativas.

Ora, se a verdade é relativa, a própria frase “a verdade é relativa” é… relativa. Então, que me deixem em paz com minha ortodoxia não-relativista num planeta redondo (isso é fato!).

Continuarei fazendo como Keynes que, após dar uma opinião, foi perguntado sobre um cenário no qual os fatos seriam outros. Keynes disse o seguinte:

“Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E o senhor, o que faz?”

Pois é.

Permito-me, assim, lançar as bases, na linha da ironia feita pelo ministro Gilmar, da nova Crítica da Razão Cínica Brasileira (CRACIBRA). Uma epistemologia do cinismo.

Absolutamente necessária.