Mesmo sob um governo como o de Donald Trump, a Bienal de Arquitetura de Chicago reconheceu a Ocupação Nove de Julho do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) como ‘modelo social’ e exaltou a líder Carmen da Silva Ferreira como uma das pensadoras urbanas mais relevantes da atualidade.
No Brasil de Bolsonaro, dona Carmen estava com a prisão decretada (obteve um habeas corpus) e seus filhos, Preta Ferreira e Sidney, ficaram presos por 109 dias acusados de associação criminosa por estarem lutando por moradia para a enorme população sem teto.
O habeas corpus de Preta (que continuará respondendo ao processo em liberdade) foi conseguido pelo empenho de um grupo chamado Rede Aliança.
Trata-se de uma rede de advogados, entidades e defensores públicos que defende pessoas e organizações alvos de violações de direitos fundamentais.
Fazem parte da aliança nomes como Ivan Marques e José Carlos Dias. Os advogados responsáveis pelo caso referido são Allyne Andrade, Beto Vasconcelos, Theo Dias, Augusto Arruda Botelho, Pierpaolo Bottini e Thiago Rocha.
O DCM conversou com Ana Paula Freitas, coordenadora executiva do projeto, na sede do Instituto Sou da Paz em São Paulo.
DCM: O que motivou a criação do grupo?
Ana Paula: O projeto surgiu no início do ano, diante do discurso de ódio por parte de governantes, por uma preocupação pelos direitos que poderiam ser violados. Não que antes isso não acontecesse, mas prevíamos que iria se agravar. O discurso “vamos acabar com todo tipo de ativismo” motivou a concepção do projeto.
Como funciona? É tudo pro bono (gratuito)?
Sim, tudo pro bono. Somos uma rede de redes para uma coordenação de ações entre advogados, Ministérios Públicos estadual e federal, Defensorias estadual e União, além de organizações, entidades, movimentos sociais. Queremos atender essas organizações que possam ter seus direitos ameaçados ou violados. E não só elas, mas pessoas que, pelo seu trabalho, passam a ser perseguidas em consequência de estarem atuando em prol de uma causa.
Como no caso de Preta, seu irmão e sua mãe?
Isso. Temos uma diretriz para atuar em casos emblemáticos e paradigmáticos, para dar luz a uma discussão maior do que necessariamente algo que diz respeito a uma única pessoa que teve o direito violado. O caso da Preta é importante, mas queríamos trazer para a pauta a violação como um todo, das criminalizações dos movimentos sociais e por moradia.
Como escolhem os casos? O projeto é proativo ou espera a demanda?
As duas formas. Quando sabemos de algum caso, vamos atrás, como foi com a Preta Ferreira. Mas temos um conselho consultivo composto por 14 pessoas para avaliar a tipologia de casos nos quais vamos atuar. Temos dois eixos no projeto. Um que trata de liberdades de imprensa, de expressão e de opinião, e outro que atua pelos direitos legais e constitucionais: gênero, raça, etnia, sexualidade e costumes, no qual enquadramos a liberdade religiosa.
Lembrei-me do caso do fiscal do Ibama que multou Bolsonaro por pescar em área de preservação e que foi exonerado…
Esse caso também é paradigmático. É uma referência de como uma pessoa no exercício da sua função, mesmo sem ser ativista de algum movimento ambientalista, pode representar uma causa maior. Não estamos com o caso desse fiscal, mas atuamos com outros servidores públicos do meio ambiente, pois essa também é uma área em que a repressão está acentuada. Assim como professores que estão sendo perseguidos pelo Escola sem Partido.
Os movimentos por moradia estão sendo muito perseguidos. Existe algum grupo mais vulnerável hoje em dia ou estão todos no mesmo barco?
Difícil dizer qual grupo está com sua condição agravada. Até porque as pessoas negras, moradoras de favela, já estavam morrendo antes. A gente entende que a maioria da população encarcerada é de pessoas negras. É a partir dessa tipologia que orientamos nossa atuação.
Este é um dos nós a serem desfeitos. Temos uma população carcerária que passou de 726 mil em 2016 para 812 mil neste ano (segundo levantamento feito por técnicos do próprio STF), sendo que metade disso está lá sem sequer ter sido julgada…
Cadeia não é solução. Não é um lugar que melhore a vida de ninguém. A pessoa não teve acesso à educação, saúde, saneamento e depois de lá ainda se torna um ‘egresso’. A mídia não ajuda quando adota esse termo horrível. Uma pessoa não é oriunda do cárcere! Ela já esteve livre e é uma sobrevivente do cárcere. Só em liberdade é que se pode procurar mecanismos de uma vida digna.
Por que isso acontece?
O processo é histórico. Nossa mão de obra vem da escravização de pessoas pseudo libertadas e toda legislação foi feita para criminalizar essas pessoas. Havia o crime de vadiagem, por exemplo. Por obvio era para pegar pessoas negras na rua.
E quando essas leis caíram, como a da vadiagem, outras foram incorporadas com a mesma finalidade.
Dê um exemplo.
A lei de drogas é mais um mecanismo de controle social de corpos. Quais corpos vão para o cárcere? Os mesmo de sempre, a etnia negra, os pobres da favela. Há uma seletividade penal. Há uma cartela de cores utilizada pela mídia no linguajar. “Suspeito” é negro; “Jovem” é branco.
Recentemente um rapaz, fotógrafo amador, foi levado para a delegacia em Jundiaí. Negro, ele foi considerado suspeito de estar fotografando casas para depois assaltá-las. Exemplo clássico, não?
Sim, um racismo estrutural que vai se enraizando nas esferas do Legislativo, do Judiciário e do Executivo que reforçam esse processo de desumanizar essas pessoas.
Nosso trajeto como sociedade foi projetado para punir, sem pensar nas garantias e direitos. Nosso Direito penal é de 1940. Primeiro criminalizamos, penalizamos e só bem depois é que demos direitos, que foram inseridos na Constituição Federal de 1988.