Enquanto autografava gentilmente seu “O homem que amava os cachorros”, Leonardo Padura me disse mais ou menos o seguinte: “Não posso opinar em profundidade sobre seu país, não vivo aqui. Da mesma forma, não aceito que quem não vive em Cuba dedique-se a fazer longas análises críticas”.
Recordei-me desse episódio ao ler a entrevista que o músico e ator Seu Jorge concedeu à coluna de Mônica Bergamo.
Vivendo nos Estados Unidos desde 2013, o vocabulário de Seu Jorge já está recheado de termos em inglês.
Diz “date” no lugar de encontro. Diz “half” em vez de meio ou metade (num trecho sobre miscigenação que certamente fará muitos movimentos negros voltarem as metralhadoras contra ele).
Mas em português mesmo a fala de Seu Jorge foi um show de contradições.
O artista afirma sofrer racismo no Brasil desde que nasceu. Todos sabemos do racismo estrutural no país e ninguém irá desacreditá-lo quanto a isso. O problema está em sua comparação com o tratamento que recebe fora daqui. Diz que jamais sofreu preconceito ou xenofobia nos Estados Unidos ou em qualquer outro país.
Cuma? Os EUA não são racistas? O governante americano de plantão é um camarada solidário e batalhador por igualdades? A polícia americana não atira em negros antes de pedir os documentos? Seu Jorge alguma vez tentou viajar para os Estados Unidos ou para qualquer outro país antes da fama?
Ao lado da filha, o cantor narra uma experiência recente, dentro de um cinema (cujo nome da cidade a menina pronuncia em tom afetado, segundo o repórter). Ao término de um filme de Spike Lee, após terem passado toda a projeção contendo o riso diante de piadas que só negros entenderiam, eles aplaudiram.
Seu Jorge então demonstra alguma surpresa ao declarar que todos olharam feio para ele e suas filhas. “Parece patrulha, cara!”, disse. Se isso não é racismo, é o que?
Mas voltemos ao início deste artigo e as palavras do escritor Padura. Seu Jorge já está vivendo fora do Brasil há mais de meia década e, embora esboce críticas ao governo Bolsonaro (somente em tiros certos como a indicação do zero três para o cargo de embaixador, diga-se) deixa claro que já perdeu a intimidade necessária para opinar sobre estas bandas.
Alheio ao que estamos enfrentando no dia-a-dia, na vida real, Seu Jorge declarou voto de confiança em Bolsonaro e disse o seguinte:
“São sete meses. É necessário ver o que será implementado e o que será conservado das conquistas que nós tivemos ao longo da história”, ponderou ele em referência ao que considera curto espaço de tempo para uma avaliação.
Alguém precisa avisar ao cantor que as conquistas estão indo pelo ralo. Que em apenas seis meses e meio, o governo Bolsonaro já deixou centenas de comunidades sem médico nenhum, já retirou direitos trabalhistas como hora extra aos domingos, acabou com subsídio para medicamentos gratuitos, está em louca cavalgada contra o ensino público, tem feito de tudo para desidratar incentivos à cultura e vai passar para a história como o governo que enterrou a aposentadoria.
O artista que interpreta o papel de Marighella em filme que estreará em breve, parece também estar acreditando nas falas bolsonaristas que deslegitimam as estatísticas de institutos sérios quando os números não lhe agradam. Enquanto o mundo todo vê com preocupação as motosserras avançando freneticamente sobre a Amazônia, Seu Jorge prefere o discurso “vamos aguardar para ver como fica”.
Não ficará nada, meu caro. Terra arrasada.
Aliás, nem índios restarão para contar história. “Nós temos índios, coisa que não existe mais no mundo, mas nós temos essa porra! E querem matar eles ainda”, disse Seu Jorge. Sim, lembra-se dos discursos de Bolsonaro em campanha? Está demonstrando revolta por que? Foi enganado?
Gosto de algumas músicas de Seu Jorge, confesso. Mas não gosto de mais ninguém que passe o pano, mesmo que levemente, para um governo desses.
A justificativa do não se posicionar politicamente em seus shows também foi uma escorregada e tanto. Para ele, “a música serve para colocar as pessoas em paz”, em “uma conexão em que não entra nada na sua cabeça”. Oi?
O novo disco de Seu Jorge é intitulado “The other side”. O músico que já foi morador de rua precisa, com urgência, repensar se após fazer fortuna e fama e conviver com bilionários de Los Angeles (ele gaba-se deslumbrado da sua nova turma, que vai de top models a Puff Daddy) não pulou definitivamente para o outro lado e perdeu a noção da realidade de quem vive no morro.
Do lado de cá, Seu Jorge, as pessoas estão morrendo de fome.