João Cezar de Castro Rocha tem 58 anos e é escritor, historiador, enxadrista e professor de literatura comparada na UERJ. Foi aluno do historiador René Girard e do especialista em literatura Hans Ulrich Gumbrecht em Stanford.
É um dos maiores especialistas em Machado de Assis no Brasil. Mais recentemente, Rocha deixou um pouco Machado para analisar as guerras culturais da extrema direita e o bolsonarismo.
Publicou o livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político” (Editora Caminhos, 2021) e organizou as duas coletâneas de artigos chamada “Tudo por um triz [Civilização ou Barbárie]” (Editora Kotter, 2022).
Rocha foi convidado pelo ministro Silvio Almeida para o grupo de trabalho na pasta de Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). A iniciativa tem como objetivo apresentar estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo e propor novas políticas públicas.
Esse grupo será comandado pela ex-deputada Manuela d’Ávila (PCdoB), que foi candidata a vice-presidente da República na chapa de Fernando Haddad (PT), em 2018, e composto por cinco representantes do ministério e 24 da sociedade civil, entre eles: o youtuber e empresário Felipe Neto; a antropóloga Débora Diniz; e a jornalista Patrícia Campos Mello.
O professor e pesquisador concedeu uma entrevista ao DCM explicando um pouco como será seu trabalho nesse GT.
Diário do Centro do Mundo: O que o senhor espera fazer dentro desse grupo no governo Lula?
João Cezar de Castro Rocha: Desejo colaborar da melhor maneira que puder para que a sociedade brasileira resgate um mínimo de estabilidade mental no espaço público.
Bolsonaro, um ativo não-leitor de tudo, e especialmente de Machado de Assis, assumiu o papel de um anacrônico Dr. Simão Bacamarte e, por quatro intermináveis anos, transformou o Brasil numa imensa Casa Verde.
Mas não se esqueça que, no final da novela, o único hóspede do hospício é o próprio Bacamarte. Não participei do gabinete de transição. Espero agora contribuir para a importante iniciativa do ministro Silvio Almeida.
O senhor sente reconhecimento pelo seu trabalho nesses últimos anos?
Estaria mentindo se negasse que o reconhecimento tem sido muito mais generoso e amplo do que jamais imaginei. Na verdade, não esperava reconhecimento algum. Tratava-se, no primeiro momento, de compartilhar minha pesquisa, movido por uma dupla angústia.
De um lado, na eleição em 2018 e ainda em 2019 havia uma tendência em reduzir Bolsonaro a uma caricatura ambulante. Ora, mas 58 milhões de votos não são exatamente uma piada!
Daí meu esforço na caracterização do bolsonarismo como uma ideologia totalitária, com viés fundamentalista. Isto é, tentei mostrar que havia um sistema de ideias, cuja consequência lógica seria o governo enquanto arquitetura da destruição, o que anunciei já em 2019.
De outro lado, estava convencido de que, sem essa caracterização, a reeleição tornava-se uma ameaça muito concreta. E, se por acaso Bolsonaro tivesse sido reeleito, a democracia teria sido assassinada no Brasil.
Neste grupo há profissionais como Isabela Kalil, Christian Dunker, Esther Solano e Felipe Neto. É um grupo capacitado para entender o atual momento do bolsonarismo?
Com certeza. Admiro muito o trabalho dos participantes do grupo e da coordenadora, a ex-deputada Manuela d’Ávila. Destaco especialmente o caráter transdisciplinar do grupo, o que permitirá uma abordagem plural do problema. A desinformação e o discurso de ódio são os grandes desafios do mundo contemporâneo.
Uma autêntica Esfinge pós-moderna: se não a decifrarmos a tempo, a democracia representativa será devorada pelo avanço transnacional da extrema direita. O bolsonarismo, nesse sentido, é a expressão nacional de um fenômeno muito mais vasto e que conta com financiamento internacional.
Preparo no momento uma trilogia sobre uma impressionante mutação da extrema direita no Brasil. No primeiro livro, “Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico”, a sair muito em breve pela Editora Autêntica, analiso o movimento em perspectiva histórica.
Em 2018, o bolsonarismo triunfa sobretudo pelo uso muito hábil dos pressupostos da guerra cultural. No entanto, a pandemia de Covid-19 produziu um impasse. As atitudes e declarações irresponsáveis e desumanas de Bolsonaro, a política de saúde de seu governo claramente criminosa, criaram um dilema: como seguir apoiando um tal líder, tão obviamente desqualificado e incapaz de empatia?
A resposta implicou a transformação gradual do bolsonarismo numa espécie de seita política, com evidentes traços de fundamentalismo religioso.
Por fim, a violência da eleição em 2022 e a radicalização posterior à derrota no 30 de outubro levaram à eclosão do terrorismo doméstico como o rosto mesmo do bolsonarismo.
No segundo livro, “Retórica do ódio: a desumanização do outro e a perversão da política”, proponho uma análise da questão central do discurso de ódio.
Defendo que se trata da ponta de um iceberg, isto é, da explosão causada por uma pedagogia do ódio, cuja arma principal é uma retórica própria.
Antes de chegar ao poder, a extrema direita transnacional tornou-se mestra no emprego de estratégias discursivas de incitação à violência e à desumanização do adversário.
É necessário decifrar o passo a passo dessa retórica para poder conter seus efeitos nocivos: esforço a que me dedico nesse livro.
Fecho a trilogia com “Dissonância cognitiva coletiva: laboratório-mundo e realidade paralela”. Como o título indica, e tenho falado muito e publicado vários artigos sobre o tema, desenvolverei os conceitos que propus de dissonância cognitiva coletiva e midiosfera extremista, que creio podem ser úteis para pensar o mundo contemporâneo, não apenas o caso brasileiro.
Como as mídias progressistas e antifascistas podem contribuir no combate ao ódio bolsonarista que permanece após a queda de Bolsonaro?
A tarefa é complexa e será longa. De imediato, precisamos romper o dique da midiosfera extremista, que mantém dezenas de milhões de brasileiros e de brasileiras reféns de um sofisticado, e fortemente financiado, ecossistema de desinformação, que age em todas as esferas do cotidiano, graças à onipresença de redes sociais e plataformas digitais.
Os acontecimentos delirantes que presenciamos incrédulos desde o dia 30 de outubro de 2022, culminando nos atos terroristas do dia 8 de janeiro de 2023, seriam impensáveis sem a atuação desse sistema de desinformação.
Aqui, veículos progressistas de comunicação têm uma enorme relevância ao oferecer um necessário contraponto à midiosfera extremista.