“Velhos são levados de casa e enterrados sem a presença de familiares”, diz monsenhor italiano ao DCM

Atualizado em 20 de março de 2020 às 13:53
Enterro sem familiares em Bergamo

Houve um choque quando “vazou” a notícia de que o agravamento do surto de coronavírus na Itália havia obrigado o país a cancelar o atendimento de idosos com mais de 80 anos.

A determinação não ocorreu, era apenas um trecho de uma cartilha da Sociedade Italiana de Terapia Intensiva que lembrava aos médicos da possibilidade de se depararem, em breve, com o maior dilema da profissão: quem vive, quem morre.

A Itália ultrapassou a China em número de mortes (3.405 contra 3.249) com uma população 23 vezes menor. É o primeiro país a ver a área da saúde se aproximar do colapso.

Se a notícia de alguns dias atrás foi desmentida oficialmente, na prática é o que acontece.

“Se uma pessoa tem entre 80 e 95 anos e grave insuficiência respiratória, provavelmente não prosseguirá no tratamento. Digo a mim mesmo que é como uma guerra. Procuramos salvar só quem tem mais chances. É o que está acontecendo”, afirmou ao jornal Corriere della Sera o médico Christian Salaroli, da equipe do hospital Papa João XXIII, da cidade de Bergamo.

O depoimento do médico endossa relatos de populares que estão chegando a Don Giulio Dellavite, monsenhor da diocese de Bergamo.

E são assustadores: idosos são levados de casa em ambulância – alguns sequer com a certeza do resultado do teste – que depois recebem um telefonema avisando que a pessoa está morta.

O DCM entrou em contato com Don Giulio para confirmar.

“Sim, infelizmente estamos vivendo isso. O parente vai para o hospital numa ambulância e a família não pode visitar. Depois, um telefonema avisa que a pessoa está morta em um caixão fechado. Imediatamente é levado ao cemitério, junto com outros caixões que aguardam o enterro. Mas o cemitério está fechado e você não pode entrar para visitar ou orar, não pode dizer adeus ao morto”, contou dom Giulio.

Essa situação se dá por conta de cemitérios e crematórios também estarem no limite.

“Nesse ritmo chegaremos ao ponto de ruptura no meio da semana que vem. Estamos trabalhando 24 horas por dia, mas as chegadas de caixões estão acontecendo em ritmo exponencial”, declarou Michele Marinello ao jornal La Stampa.

Ele é administrador de um grupo que possui 15 crematórios, 4 deles na região do Piemonte, vizinho à Lombardia, para onde centenas de cadáveres são levados devido não ter mais condição de enterros nas cidades lombardas.

A ordem de crescimento do número de infectados e a proporção de mortos (8,3%) na Itália deixou a China para trás. Longe.

E o Brasil apresenta um ritmo superior ao italiano, comparativamente. Muito superior.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, nos primeiros 20 dias a Itália passou de 2 para 3 casos. No mesmo período, o Brasil pulou de 1 para 290 (dados do Ministério da Saúde).

Hoje já temos 7 mortos e 621 contaminados no momento em que este texto é escrito. O número de casos suspeitos ultrapassou a casa da dezena de milhares.

Essa velocidade levará o país a um cenário similar ao que a Itália vivencia hoje em pouco tempo.

O Brasil tem cerca de 31 mil leitos de UTI, somando as redes pública e privada, dos quais 95% (na rede pública) e 80% (dos hospitais privados) já estão ocupados. Ou seja, apenas uns 6 mil disponíveis.

Das 4 mil cidades com população abaixo de 50 mil habitantes, a maioria não tem uma única ambulância.

Com 12 milhões de desempregados, 39 milhões de “informais” e 5 milhões de “desalentados” (dados do IBGE em janeiro), a corrida ao SUS levará o sistema ao colapso. Alcançarmos o cenário de hospitais sem condições de receber mais ninguém é questão de pouco tempo.

“Não haverá estrutura quando chegarmos no pico”, reconheceu Adelvânio Francisco Morato, presidente da Federação Brasileira de Hospitais.

Aí é que entram as questões: O quanto a rede privada irá realmente ser acionada? Os mais necessitados poderão ir diretamente, ou precisarão ser encaminhados após passar primeiramente pelo sistema público de Saúde? Quando chegar no ponto de decidir quem vive e quem morre, qual será o critério: idade ou carteirinha de associado?

Nossa vulnerabilidade frente ao vírus é com a enorme aglomeração de pessoas em barracos sem saneamento, sem recursos financeiros e com exequibilidade zero para se isolar dentro de uma residência.

A realidade da imensa maioria da população é completamente diferente do perfil classe média enfadonha que tem aparecido nos telejornais dando depoimentos “conscientes” de como está a quarentena numa casa em que cada um tem seu quarto, com vários banheiros, com a empregada doméstica nos afazeres e com dinheiro suficiente para fazer compras pela internet. Assim é fácil.

Na periferia não é que não exista um quarto para cada pessoa. Não há nem mesmo um colchão por pessoa em muitos casos.

Quem será deixado para trás, sem tratamento? Os velhos na Itália são os pobres no Brasil.