As semelhanças entre dois semideuses do jornalismo.
Plutarco escreveu Vidas Paralelas, em que comparava gregos e romanos assemelhados. Demóstenes e Cícero, os grandes oradores, por exemplo. Ou Alexandre e César.
De vez em quando tenho vontade de usar essa lógica para falar de jornalistas que sejam essencialmente parecidos, mas separados por uma ou mais gerações.
Claudio Abramo e Elio Gaspari, para ficar num caso. Claudio morreu com pouco mais de 60 anos, Elio vai chegando aos 70 ainda ativo e influente como colunista – mas consideravelmente distante de seu primado na Veja.
Ambos foram generais de redações. Claudio nos anos 60 e 70 na Folha, Elio na década seguinte na Veja. Uniam um talento jornalístico extraordinário a uma dose de carisma igualmente fora da curva. Todos os ouvidos paravam para escutá-los quando falavam.
Inspiravam, cada qual de seu modo, admiração em quase todos, adoração em muitos e temor generalizado. Gostavam da adulação que provocavam em seus liderados, expressas em coisas como risadas fortes mesmo em piadas apenas medianas.
Claudio conheci garoto, quando meu pai me levava à Folha. Lembro com nitidez a elegância casual de suas roupas, da gravata sob o colarinho desabotoado, da bengala que lhe dava um ar aristocrático, da voz rascante de quem crescera mandando, de uma mecha grisalha do cabelo cobrindo parte do rosto.
Elio era mais plebeu nos trajes, mas tinha o mesmo timbre dominante de Claudio.
Não tinham cultura acadêmica tradicional, mas compensavam isso com uma voracidade notável – e inevitavelmente caótica – por leituras. Cultivavam uma aura esquerdista que lhes caía tão bem quanto um paletó feito pelo melhor alfaiate da cidade.
Tinham o instinto da notícia, o senso da hierarquia dos fatos, e isso os levava a distinguir facilmente o que era manchete e o que era uma nota de rodapé – um atributo raro entre os jornalistas.
A formação jornalística de ambos foi diferente. Claudio se educou, como jornalista, no Estado de S. Paulo, nos anos 1950, época de ouro do jornal. Isso seria importante para ele atrair a atenção de Frias quando este decidiu diversificar seus negócios – concentrados basicamente numa granja – e ingressar no glamuroso universo da mídia comprando a Folha, no início da década de 1960. Frias era leitor apaixonado do Estadão.
A educação jornalística de Elio foi menos politizada. Ele começou ajudando o colunista (e alpinista) social Ibrahim Sued a buscar notas na sociedade carioca. Anos depois, na redação da Veja, Elio se referia com frequência a Ibrahim com carinho nostálgico. Muitas vezes, usava um bordão do colunista social para se despedir dos jornalistas da revista: “Ademan, que eu vou em frente.”
Muitas das pessoas que trabalharam com eles contam, encantadas, histórias de ambos. Lembro, por exemplo, uma vez em que Elio escreveu uma matéria de capa da Veja de trás para a frente, por razões industriais. As páginas iniciais fechavam antes das últimas.
Mas, do lado negativo, também não esqueço as frases – brilhantes – que Elio criava para diversas situações para que depois repórteres como eu encontrassem gente que topasse passar por autoras delas.
Por que o próprio Elio não as assumia é um mistério para mim. Foi assim que acabou atribuída a Joãozinho Trinta a célebre sentença segundo a qual pobre gosta de luxo e intelectual de miséria.
Tinham em comum também o extremo cuidado com que tratavam com os empresários da mídia – um traço menos nobre de suas personalidades. Claudio não aderiu à greve dos jornalistas do final da década de 1970. Mas com certeza se sentiria ultrajado se o chamassem de furagreves, ou de patronal. Provavelmente, para aquietar a consciência, pensava que se fosse à greve seria subsrituído por alguém de “direita”.
Tanto zelo não impediria que Frias varresse Claudio da redação da Folha quando o general Hugo Abreu determinou por telefone, no final da década de 1970. (O governo militar ficara irritado com uma crônica do grande Lourenço Diaféria na qual ele dizia que as pessoas faziam xixi na estátua no centro de São Paulo do patrono do Exército, Duque de Caxias. Lourenço, no texto original, usou o verbo “mijar”. Meu pai o convenceu a trocar por “urinar”.)
Elio jamais enfrentaria uma situação parecida: cultivou relações próximas, amigas com potências do regime militar como o presidente Ernesto Geisel e o pai do SNI, general Golbery do Couto e Silva, e com civis influentes como o governador baiano Antônio Carlos Magalhães. (Hoje existe um entendimento de que este tipo de proximidade é nocivo para o leitor. Naqueles dias, considerava-se que isso trazia furos para as publicações.)
Claudio escreveu uma primeira frase primorosa no obituário que fez de Carlos Lacerda, que antes de se dedicar à política foi um grande jornalista. “Ele foi o melhor de todos nós”, disse Claudio. Anos depois, o jornalista Pedro del Picchia, discípulo de Claudio na Folha, utilizaria a mesma frase para falar de seu mestre morto.
Elio Gaspari também cultivava com esmero os donos das empresas. Uma vez, numa reportagem sobre a Folha feita na revista Vip, Elio foi citado. Ele teria dito que a Folha era como a Roma antiga, “colunas e ruínas”. Ele ligou imediatamente para o diretor de redação da Vip, Marco Rezende, para desmentir a frase e pedir uma correção. Ouvi também uma vez, numa reunião na Globo, Roberto Irineu Marinho dizer que Elio lhe fizera um roteiro essencial de um museu de Nova York, o Metropolitan. (Elio foi correspodente em Nova York.) O objetivo era poupar Roberto Irineu de caminhadas a esmo, movidas pela falta de conhecimento. Uma consulta ao Google daria o mesmo resultado, mas o mimo de Elio agradou fortemente o presidente da Globo.
Claudio e Elio pareciam ter um olho nos empresários da mídia e outro nos leitores. Mas esse olho único que ambos possuíam para o jornalista em si, para a essência da notícia, era tão forte, tão brilhante que os fez serem o que foram nas redações — dois semideuses.