Na semana passada, ao defender no Supremo Tribunal Federal, a anulação da sessão da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que tirou da cadeia três deputados estaduais, a procuradora-geral Raquel Dodge disse que o Estado se tornou uma terra sem lei.
Dodge não está totalmente errada. Como mostrou o Fantástico deste domingo, as leis estão sendo desrepeitadas em horário nobre, diante de grande audiência, no Estado do Rio de Janeiro.
É o que aconteceu no caso em que o Ministério Público do Estado gravou e divulgou as imagens de políticos e empresários presos, em situações que se justificam apenas pela vocação sensacionalista da emissora.
Qual a importância de mostrar que a ex-governadora Rosinha Matheus e a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo dividem a mesma cela e não ficam perto uma da outra porque seriam inimigas?
Qual o sentido de mostrar que o milionário Jacob Barata Filho come queijos importados ou que Sérgio Cabral incorporou à refeição camarões que mandou trazer de casa?
O preso pode se alimentar de comida de fora do presídio, desde que passe por inspeção. É o chamado jumbo, que toda família leva para parente preso, seja rico ou pobre. Se rico, como Barata, natural que leve algo acima da média.
A comida dos presos é rejeitada por todos que podem comer algo melhor.
Quando eu fazia reportagem para uma emissora de TV, vi algumas crianças na porta de uma delegacia do Jaçanã, bairro de São Paulo, onde havia carceragem. Elas esperavam pelas marmitex que eram rejeitadas pelos presos.
Não existe surpresa nem ilegalidade no fato de presos se alimentarem com comida que seja de fora do presídio.
Por que, então, as imagens foram divulgadas?
Melhor: por que as imagens foram feitas, no sistema de 360 graus, como o Fantástico usa em programas especiais?
Será que algum promotor tem o equipamento em casa? Ou estaria ali a serviço de uma rede de televisão.
A Constituição protege o cidadão em seu direito à privacidade e intimidade, em dois incisos do Artigo 5o.:
V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Alguém poderia objetar que são presos, não merecem essa proteção constitucional. Errado. O Código Penal é explícito, no artigo 38, a respeito do tema:
O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.
Nos estertores da ditadura militar, no início da década de 80, o Brasil aprovou a Lei de Execuções Penais, considerada por juristas como exemplar no respeito aos direitos.
O artigo 41 é explícito ao proibir atitudes como as perpetradas pelo Ministério Público em conluio com a Globo:
Artigo 41 — Constituem direitos do preso:
VIII – proteção contra qualquer forma de sensacionalismo.
Ao exibir a reportagem, a Globo tem motivo além da busca por audiência: vingar-se de Garotinho — e, por tabela, atingir sua mulher.
O ex-governador não perde nenhuma oportunidade em que possa cobrar da emissora resposta para os casos em que ela é acusada de sonegação e corrupção.
Recentemente, Garotinho gravou um vídeo para falar da necessidade de investigar a emissora pela acusação de que pagou propina para obter os direitos de transmissão da Copa do Mundo.
O ex-governador também protagonizou uma cena antológica ao dizer, numa entrevista ao vivo na Globo, que a empresa foi condenada pela Receita Federal por crime contra a ordem tributária, por sonegar impostos — na verdade, não foi a Globo acusada como pessoa jurídica, foram os próprios donos da Globo, Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho.
Há, portanto, razões para a Globo ter ódio de Garotinho. Ainda assim, não poderia usar a emissora — uma concessão do Estado —, para vingança.
Mas e o Ministério Público? O que explica sua participação no que pode ser descrito como crime?
Subserviência, vontade de aparecer, inépcia?
Não importa. Se o Brasil fosse uma democracia ou um país minimamente civilizado, teria que investigar os promotores, que agiram não em defesa do interesse público.
Seria uma atitude de higiene institucional investigar, primeiramente, a senhora Eliza Fraga, coordenadora de Segurança e Inteligência do Ministério Público.
Foi ela quem deu entrevista para explicar as imagens do vídeo.
Essa comentarista é, portanto, a primeira suspeita de autorizar ou gravar as imagens, e depois divulgá-las.