Publicado originalmente no ConJur:
Por Fernanda Valente e André Boselli
Segundo a Lei 13.979/2020 — que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 —, as autoridades podem requerer “bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”. O manejo do dispositivo, contudo, está por trás de ações administrativas, no mínimo, contestáveis.
Foi justamente o que aconteceu em Cotia (SP). A prefeitura havia ingressado com ação para garantir a compra dos equipamentos pelo município, que foi acolhida nesta sexta-feira (27/3) pela 2ª Vara Federal de Osasco, em sede de tutela antecipada antecedente.
Horas depois, o vice-prefeito, Almir Rodrigues, que também e secretário de segurança pública, numa ação “cinematográfica”, foi a um fabricante de respiradores pulmonares — a Magnamed Tecnologia Médica —, sem autorização para lá ingressar. Acabou usando a força da guarda municipal para tomar posse dos aparelhos — ao todo, 35. O argumento foi o de ajudar a população.
Veja o momento em que se deu a ação das autoridades municipais de Cotia:
Conflito de poderes
Antes da decisão desta sexta-feira (27/3), o Ministério da Saúde havia oficiado a empresa, em 19/3, requisitando a totalidade dos aparelhos produzidos e já disponíveis a pronta entrega, assim como os que viesses a ser fabricados nos seis meses subsequentes.
Contudo, outro ofício do Ministério da Saúde, de 25/3, alterou seu posicionamento. Para a pasta, os bens poderiam ser liberados para comercialização.
A aventura do município, porém, foi derrubada em decisão da juíza federal Adriana Delboni Taricco deste sábado (28/3). A juíza acolheu pedido do Ministério Público Federal e determinou que a Prefeitura devolva os 35 aparelhos apreendidos.
Isso porque, segundo a empresa, os aparelhos ainda não haviam sido fiscalizados pela Anvisa.
Assim, ao argumento de que seria arriscado que os respiradores, desde já, fossem utilizados, a magistrada entendeu que há “risco iminente à saúde de futuros pacientes acometidos com Covid-19, que podem vir a depender de tais bens em situação frágil de saúde”.
Na decisão, ela fixa multa diária de R$ 10 mil caso a municipalidade não restitua os aparelhos à empresa, bem como responsabilização pessoal do prefeito e vice-prefeito de Cotia.
Repercussão
Em tese, um administrador, como o chefe do executivo de Cotia, poderia, sim, usar da propriedade privada — de terceiros, portanto — ante uma situação de crise. É o que prevê o inciso XXV do artigo 5º da Constituição da República:
“No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.
A questão que se coloca, contudo, diz respeito a como as diversas autoridades, de diferentes níveis federativos, atuarão coordenadamente para enfrentar a crise.
Ao comentar o caso de Cotia, o tributarista Igor Mauler Santiago afirmou: “Requisições administrativas cumuladas por diversos entes federativos tornarão disfuncional a distribuição dos equipamentos. Sem contar que os seus adquirentes eram hospitais, que terão frustrada a sua expectativa de ampliação nesta emergência. Retirar de uns hospitais para entregar a outros não resolve o problema. O foco deveria estar no aumento da capacidade de produção”.
Para Jarbas Andrade Machioni, também comentando o caso, é provável que o preposto do prefeito tenha mentido, quando da ação na última sexta-feira (27/3). “Ele mencionou decisão de juiz que autoriza prefeitura comprar”, afirma. Isto é, o comando judicial da 2ª Vara Federal de Osasco apenas versava sobre a possibilidade de compra, pela prefeitura, dos equipamentos. E não sobre a “apreensão” deles. “Mas tecnicamente não dá para dizer que se trata de um ‘roubo’, apesar da violência”, acrescenta.
Ao analisar o caso, a advogada Sônia Rao também identifica que a municipalidade de Cotia agiu em desconformidade com o comando da primeira decisão judicial.
“O pedido de tutela de urgência que foi deferido pela Segunda Vara Federal de Osasco ordenou apenas que a empresa fornecedora não impedisse a aquisição dos aparelhos pelo município de Cotia. A decisão judicial em nenhum momento autorizou a utilização de força policial ou a ‘apreensão’ dos aparelhos”, destaca.
Para ela, “a cena retratada em vídeo, além de não encontrar qualquer respaldo na decisão judicial, revela despreparo e insensatez. São tempos difíceis, mas não podemos abrir mão do bom senso e da legalidade, sob pena de contribuirmos para a vitória do coronavírus , da barbárie”.