Vitória histórica da esquerda em Fortaleza impacta o balanço geral das eleições. Por Miguel do Rosário

Atualizado em 28 de outubro de 2024 às 10:37
Evandro Leitão recém-eleito Prefeito de Fortaleza – Foto: Reprodução

Originalmente publicado em O Cafezinho

Para quem não acompanhou de perto o processo político no Ceará pode ser difícil compreender a dimensão épica da vitória de Evandro Leitão, candidato do PT, nas eleições de Fortaleza.

A princípio, tudo indicava que Evandro perderia. Seu adversário, André Fernandes (PL), havia alcançado uma vitória expressiva no primeiro turno, liderando com 40% dos votos, seis pontos à frente de Evandro, que somou 34%.

Para entender melhor o tamanho do desafio, vale lembrar que 1,49 milhão de eleitores compareceram às urnas no primeiro turno em Fortaleza. A abstenção foi uma das menores do país e inferior à de eleições anteriores na cidade. André teve 562,3 mil votos; Evandro, 480,1 mil – uma vantagem de 82 mil votos para André.

Aqui estão os resultados completos do primeiro turno:

– André Fernandes (PL – 22): 40,20% – 562.305 votos
– Evandro Leitão (PT – 13): 34,33% – 480.174 votos
– José Sarto (PDT – 12): 11,75% – 164.402 votos
– Capitão Wagner (UNIÃO – 44): 11,40% – 159.426 votos
– Eduardo Girão (NOVO – 30): 1,06% – 14.878 votos
– Tecio Nunes (PSOL – 50): 0,64% – 8.923 votos
– George Lima (SOLIDARIEDADE – 77): 0,49% – 6.803 votos
– Chico Malta (PCB – 21): 0,09% – 1.205 votos
– Zé Batista (PSTU – 16): 0,04% – 615 votos

A situação de Evandro ainda pioraria muito antes de melhorar.

Além de enfrentar a difícil tarefa de reverter a vantagem de André, ele tinha um obstáculo monumental: o terceiro, quarto e quinto colocados – o prefeito José Sarto, Capitão Wagner e Eduardo Girão – se mobilizaram em apoio ao candidato do PL.

Esses nomes, incluindo André, representavam 901 mil votos. Com isso, o bolsonarista iniciou a campanha do segundo turno com o apoio de candidatos que, juntos, somavam 153.479 votos a mais do que o necessário para vencer no dia 27.

Para minimizar o impacto no PDT, Sarto declarou neutralidade, mas acionou toda sua máquina política em prol de André. Roberto Claudio, ex-prefeito de Fortaleza e figura importante do grupo de Sarto e Ciro Gomes, se dedicou integralmente à campanha de André, aparecendo em propagandas e eventos ao lado do candidato.

No dia da eleição, Roberto Claudio votou com o número 22 estampado no peito, ao lado de Sarto e Ciro Gomes. Essa imagem se tornou icônica. Ciro utilizou todo seu capital político para atacar Evandro Leitão, em uma campanha de críticas contínuas até a véspera da eleição.

No dia da eleição, Ciro posta voto ao lado de Roberto Claudio adesivado com 22, número de André Fernandes, candidato do PL à prefeitura de Fortaleza – Foto: Reprodução

Tudo indicava – repito – que a vitória seria de André Fernandes.

Outro problema para Evandro era sua performance ruim em entrevistas e debates. Apesar de sua longa trajetória política, ele parecia nervoso, gaguejava e se confundia, e André explorou essas fraquezas impiedosamente nos embates televisivos.

De onde Evandro tiraria votos? Como reverteria o jogo com uma atuação tão fraca nos debates?

Felizmente, a democracia é imprevisível. Muitas vezes, o candidato que vai mal nos debates conquista a simpatia do eleitor. Ele – o eleitor – se identifica com essas pequenas falhas humanas, que tanto afligem os marqueteiros e os apoiadores, que gostariam de ter um candidato “superhomem”, sem defeitos.

O eleitor não adere cegamente às orientações de candidatos votados no primeiro turno. As primeiras pesquisas após o primeiro turno mostraram que muitos eleitores de Sarto, predominantemente progressistas, preferiam que ele apoiasse Evandro. Parte dos eleitores de Capitão Wagner também optaram por Evandro, julgando-o mais equilibrado.

Evandro podia até ter um desempenho fraco nos debates, mas seus defeitos eram superficiais e não influenciavam diretamente o voto. Em contrapartida, ele tinha vantagens concretas sobre seu adversário, como sua capacidade de articular apoio de partidos, lideranças sociais e da comunidade artística. Seu maior trunfo, contudo, era sua trajetória em defesa das instituições democráticas, da ciência e da justiça social.

No final, Evandro venceu com 716.133 votos (50,38%), contra 705.295 para André, uma diferença de 10.838 votos, ou 0,73%.

Outro ponto importante: o número de votos válidos subiu de 1,39 milhão no primeiro turno para 1,42 milhão no segundo, o que indica que Evandro conseguiu mobilizar eleitores ausentes no primeiro turno para comparecerem às urnas no segundo.

Para vencer, Evandro ampliou sua votação em 235,9 mil votos em relação ao primeiro turno, um crescimento impressionante de 49%, de 480 mil para 716 mil votos.

André também cresceu, passando de 562 mil para 705 mil votos, um aumento de 25%.

Esse resultado impacta no balanço político nacional?

Sim, muito!

A derrota da esquerda em São Paulo já era esperada. Apesar de toda a agitação por causa de “viradas” e “tracking”, todo mundo sabia que a situação de Boulos era particularmente complicada.

O quadro paulistano era muito diferente do que se via em Fortaleza. Enquanto os estrategistas de Evandro sabiam que a maioria dos eleitores de Sarto, independentemente da posição do candidato, migrariam para o mais progressista, em São Paulo a situação era muito mais adversa. O eleitorado de Pablo Marçal estava irremediavelmente radicalizado à direita, e seria muito mais difícil convencê-los a optar por Boulos no segundo turno. Como se viu no resultado, foi exatamente o que aconteceu. Não houve exatamente uma surpresa.

De qualquer forma, a esquerda não perdeu a prefeitura de São Paulo porque ela já não a tinha.

Em Belo Horizonte, a vitória de Fuad, atual prefeito, contra o bolsonarista Bruno Engler, é uma demarcação política importante do eleitorado mineiro, contra o extremismo fascista.

O bolsonarismo conquistou alguns bastiões importantes, como a prefeitura de Cuiabá, e seria temerário dizer que Bolsonaro foi o grande perdedor, ou que o bolsonarismo perdeu.

Bolsonaro saiu maior das eleições, e continuará a ser um importante eleitor em 2026. O bolsonarismo consolidou-se como principal força da direita, além da única a mobilizar uma grande militância orgânica.

Mas a esquerda resistiu. O principal partido do campo, o PT, registrou um crescimento modesto, mas concreto, em número de prefeituras e vereadores, e passou de zero a 1 capital. E não qualquer uma, mas a principal economia do nordeste e quarta maior cidade do país. O PSB também cresceu, e fixou um nome – o prefeito João Campos – com grande potencial para governar Pernambuco, e se tornar uma liderança nacional.

Lula venceu em 2022 em condições piores do que enfrentará em 2026. Além disso, temos algumas movimentações que irão ajudar muito Lula nas próximas eleições presidenciais, como a entrada de Eduardo Paes como candidato ao governo do Rio, em condições extremamente competitivas.

Quanto aos erros da esquerda, e a necessária autocrítica, este é um processo doloroso que não virá de análises apressadas ou de lacrações em rede social. Essa autocrítica não significará ouvir o que ela quer ouvir, tal como platitudes de que se deveria ter ido ainda mais à esquerda. Autocrítica será ouvir o que a esquerda não gostaria de ouvir, como reformular sua visão sobre empreendedorismo, meritocracia e trabalho próprio, reduzir sua hostilidade exagerada a quadros de centro, como Tábata Amaral, ter mais sinceridade e objetividade ao tratar da frente ampla, parar de empurrar qualquer divergência para o campo moral.

Dou apenas um exemplo. Em Fortaleza, a esquerda viu com horror, confusão e perplexidade um candidato que se notabilizou, no início de sua vida como youtuber, por um vídeo em que ensina a depilar o ânus.

Esse passado de André era considerado como um grande impeditivo à sua ascensão política, e de fato não creio que isso tenha ajudado o bolsonarista a angariar mais apoios. Além disso, sabemos o que aconteceria se um candidato da esquerda tivesse o mesmo passado.

Por outro lado, é claro que se trata de uma bobeira, uma puerilidade, sem contar que, deixando a moral de lado, não há propriamente nada de errado, tampouco de imoral, em ensinar o público a depilar as partes sensíveis do corpo. O eleitor de direita, logo se viu, não se deixa horrorizar tão fácil. De certa maneira, é até um bom sinal, uma qualidade, do eleitor de direita, que ele não seja tão rígido a ponto de dispensar um candidato por conta de uma história dessas.

Enfim, as eleições municipais nos subsidiam com dados infinitamente ricos em informações. Eles nos possibilitarão corrigir rotas para uma nova vitória em 2026 e nos anos seguintes, sempre lembrando que o principal desafio da esquerda não é vencer eleições. Isso ela já provou que consegue. O desafio é fazer bons governos, a nível local e nacional, capazes de promover o desenvolvimento econômico, social e tecnológico do país.

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