PUBLICADO NO REDE BRASIL ATUAL
POR VITOR NUZZI
Em palestras e entrevistas, José Saramago insistiu, variando as palavras, que a literatura não muda o mundo, embora a leitura de um livro possa influenciar uma pessoa. A escritora espanhola Pilar del Río, companheira de Saramago por mais de duas décadas, até a morte do autor português, em 2010, lembrou desse ponto durante debate realizado ontem (11) à noite na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro de São Paulo. Pilar falou também de democracia, direitos humanos e da visita que fará na tarde desta quinta-feira (12) ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Curitiba. A ex-presidenta Dilma Rousseff estará com ela.
Pilar está desde a semana passada no Brasil, participando de uma série de eventos literários e falando do livro Último caderno de Lanzarote – O Diário do ano do Nobel (Companhia das Letras), lançado em 2018, depois de 20 anos “esquecido” em um computador. Foi um “desaparecimento entre as urgências” do escritor, explicou a presidenta da Fundação José Saramago. Lanzarote, na Espanha, é a ilha que o casal escolheu para morar, no início dos anos 1990. E o livro traz os registros cotidianos do autor no ano em que ele se tornou o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o prêmio da Academia.
Foi em 8 de outubro de 1998. O registro de Saramago, em seu diário, é singelo. Ele encontrava-se em Frankfurt, depois de participar da Feira do Livro, já prestes a embarcar para Madri, quando recebeu um telefonema avisando que ele deveria permanecer. “Aeroporto de Frankfurt. Prêmio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas” – esta foi sua anotação para um dia especial.
Uma jornalista arguta, Dolors Massot, do diário espanhol ABC, conseguiu ir com o editor de Saramago, Zeferino Coelho, até o aeroporto, e assim realizou a primeira entrevista de Saramago já como Nobel. Vinte anos depois, diria: “Tenho noção de que fiz uma muito boa má entrevista. Não tive tempo de me preparar, havia muita confusão, fomos conversando no carro, éramos interrompidos o tempo todo. Senti-me quase uma correspondente de guerra”.
Levantado em alegria
O relato de Dolors está em outro livro debatido ontem, Um país levantado em alegria, sobre os 20 anos do Nobel concedido a Saramago. O autor é o jornalista brasileiro Ricardo Viel, um apaixonado pela obra do escritor e que agora é justamente diretor da Fundação Saramago, em Lisboa. É um registro da “história” do prêmio de 1998, com depoimentos, bastidores e histórias como a da jornalista. Intercalando às falas de Pilar e Viel, na Biblioteca Municipal, o ator Gustavo Machado leu trechos da obra do escritor português.
Pilar, que estava em Lanzarote, soube na véspera da premiação. Mas não pôde contar a Saramago. “Tinha a notícia mais importante nas mãos e não podia contar a ninguém”, relatou a Viel. Em telefonema ao marido, inventou uma história para tentar convencê-lo a ficar mais um dia em Frankfurt, sem sucesso. No aeroporto, Saramago ouviu seu nome sendo chamado pelo sistema de som. Uma funcionária da companhia Iberia, enfim, o avisa: “Há uma pessoa que quer falar com você por telefone, é que o senhor ganhou o prêmio Nobel”. Quem ligava era a Teresa Cruz citada no diário, jornalista que trabalhava na Feira de Frankfurt para um órgão de promoção do turismo de Portugal.
Uma pessoa do público quer saber de Pilar o que Saramago diria do momento atual e o que ela dirá a Lula. Ela lembrou que muitas vezes Lula e Saramago se encontraram. Diz que pretende “ouvir” e manifesta preocupação com a situação dos direitos humanos em todo o mundo, demonstrando contrariedade com a prisão do ex-presidente.
Contra a “cegueira” política, tema de um dos livros mais conhecidos do escritor português, sugere a leitura de Ensaio sobre a Lucidez, romance publicado em 2004 em que todos os eleitores de um país decidem votar em branco, alarmando as autoridades. Uma metáfora, observa Pilar, para pedir “consciência” e lembrar que a democracia é também responsabilidade das pessoas, não apenas dos governos.
Poder econômico
Em conferência dada em 13 de março de 1998, no México, reproduzida no livro de Viel, Saramago fala justamente de democracia, sobre um Estado que deve garantir liberdade e igualdade entre pobres e ricos. Mas observa que a constatação “estilhaça-se contra a dura muralha dos factos: os ricos foram sempre aqueles que governaram o mundo ou que sempre tiveram quem por eles governasse”. Cita o chamado “Mercado”, com maiúsculo, no sentido do poder financeiro, “o poder económico e financeiro transnacional e pluricontinental, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo”. E acrescenta que é preciso sempre discutir a democracia, para reinventá-la.
Em Estocolmo, no banquete do Nobel, em 10 de dezembro de 1998, Saramago abriu seu discurso falando dos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E afirmou que, nesse período, “não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados”, com aumento das injustiças e das desigualdades. “Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem (…). Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos”.
Pilar segue Saramago na defesa de uma “Carta dos Deveres Humanos”. De uma humanidade que se preocupe com as questões climáticas, de gênero, com o planeta, os animais. Um “código ético-moral para que nenhum cidadão sinta que é prescindível”.
E quem mora fora pode opinar sobre as questões de um país?, pergunta Viel, que já sofreu esse questionamento. A resposta de Pilar é sintética: “Não sou de Marte”.