“Mas que saudade.”
Assim termina um artigo breve, uma homenagem sintética que meu pai prestou à sua mãe quando ela morreu, em 1972.
Entre tantas coisas que li na vida, é um dos meus textos favoritos por diversos motivos. Pela simplicidade elegante, pela emoção na dose precisa, pelo autor do tributo e também pelo objeto dele. Papai e vó Alice.
A graça está em cada palavra. Papai dá uma lição de bons modos quando escreve que as irmãs e ele – não ele e as irmãs, a ordem costumeiramente usada em nossa sociedade egocêntrica – haviam enterrado a mãe naqueles dias.
Reli-o, uma vez mais, graças à digitalização do acervo da Folha, o jornal em que papai trabalhou a vida toda. Foram 33 anos de amor irrestrito, entrega absoluta ao jornal. A Folha fez parte de minha infância e mocidade como se fosse uma tia querida, sempre presente no dia a dia de nossa casa na rua José Rubens, na Previdência, um bairro paulistano cheio de jornalistas.
Uma vez, com uns 20 anos, escrevi um texto e pedi a papai que lesse. Ele passou os olhos e viu a palavra “adiposo”, gordo. O olhar dele foi suficiente para que jamais usasse esta palavra ou qualquer outra pedante e arcaica em meus textos.
Papai era um estilista, como se pode ver num conto que escreveu e publicou antes que o jornalismo o capturasse definitivamente. É a história de uma obsessão, uma tragicomédia, O Homem que Colecionava Caixas de Fósforos.
Papai amava e admirava Vó Alice de forma total. Tenho para mim que ele jamais amou ou admirou ninguém como sua mãe. Era costureira, estudara pouco. Mas sabia o quanto a educação era importante e transmitiu este sentimento a todos os seus quatro filhos, papai e as três irmãs: Tia Teresinha, Tia Maria Ely e Tia Teté. Papai, o primogênito, era doido pelas irmãs. Tratava-as como filhas, bem como aos filhos delas. Os quatro nos legaram o exemplo da importância da proximidade entre irmãos.
Eram de Cravinhos, onde Vô Itamar trabalhava como ferroviário.
Papai foi estudar em São Paulo. Fez Letras na USP, onde conheceu mamãe. Nas férias, ia para Cravinhos e muitas vezes relutava na hora de voltar a São Paulo. Cravinhos era e é muito mais acolhedora. Vó Alice, e você pode imaginar com que dor, levava o filho à rodoviária e praticamente o punha no ônibus. Sabia que o filho tinha que caminhar seu caminho.
Uma vez papai deu uma entrevista numa rádio, em que falou de sua infância em Cravinhos. Fico tocado ainda hoje ao lembrar a maneira como ele se referiu a Vó Alice. Tão formidável era ela que seu nome está presente em várias pessoas de nossa família.
Minha irmã mais velha é Maria Alice. Tia Maria Ely tem uma neta chamada Alice, filha de minha prima Marisa. Tia Teresinha deu a uma filha o nome de Marialice.
Vó Alice morreu de amor. Perdeu a vontade de viver quando Vô Itamar morreu. Para muita gente, a morte do marido ou da mulher significa libertação. Para Vó Alice, representou uma primeira morte. A segunda e definitiva viria meses depois.
Não sei por que, talvez para evitar a dor de lembrar as coisas que passaram, papai ficou um longo tempo sem ir a Cravinhos. Mesmo quando íamos a Ribeirão, a terra da família de mamãe, ele não queria entrar em Cravinhos, vizinha. Mas na nossa última viagem juntos a Ribeirão papai fez questão de passar por Cravinhos na volta. Mostrou sua casa, sua escola, a estação onde vovô trabalhava.
Papai estava muito bem. Era um homem vigoroso, dinâmico, nada dado a achaques. Não deixou de trabalhar por gripe ou qualquer outra coisa um só dia em 33 anos de Folha.
Poucos meses depois, estava morto. Alguma coisa o levou a despedir-se de sua pequena cidade. Premonição, provavelmente.
Minha vida se partiria em duas. A morte de papai me transformou aos 26 anos num eterno órfão, num cara melancólico e, muitas vezes, revoltado. Minhas explosões derivam, na origem, do inconformismo de perder meu pai. Faltou a mim a sabedoria de papai para lidar com sua morte. Ele próprio lidou muito bem. Na agonia, jamais se queixou, nem quando já não podia sequer beber água. Mamãe embebia água num lenço e delicadamente, como se lhe passasse uma hóstia, molhava os lábios secos de papai. Nós deveríamos confortá-lo ali na cama do Sírio Libanês e no entanto foi ele que nos confortou com sua força inexpugnável, com sua alma invencível.
Não acredito em Deus, não acredito em coisa nenhuma, acho que vamos do nada para o nada. Ou para a imensidão cósmica, como alguns gostam de enfeitar. Já disse que detestaria nascer de novo. Seria abominável ter outro pai que não o que tive, ou outra mãe. Para ser franco, acho que uma vida é suficiente. Não vou dizer, como Schoppenhauer, que a pior coisa que pode acontecer a alguém é nascer, mas o sofrimento de uma única jornada basta.
Não acredito em nada.
Mas como gostaria que papai estivesse reunido com Vó Alice.