As músicas e os músicos que amamos são registros do tempo vivido, do tempo que vivemos. Também daquele que sonhamos ou que se apresenta como o novo surpreendente. Foi assim com Carmen Miranda, Ney Matogrosso, As Frenéticas, Michael Jackson, David Bowie, que há pouco se foi. É assim com Liniker, jovem negro, cantor e performer vindo do inesperado interior de São Paulo.
Contemporâneos dele e também renovadores da soul music como o cantor Dão e a banda Aláfia vêm de grandes centros produtores de música negra, Salvador e São Paulo, respectivamente. Mas um cantor negro swingueiro, de linguagem pop e matrizes tradicionais como referências (o samba tocado pelos tios e o samba rock dançado e ensinado pela mãe), nascido e criado em Araraquara, é realmente surpreendente, por mais que Liniker tenha estudado teatro na cidade de São Paulo.
A surpresa, entretanto, dá uma trégua se consideramos o grande caldeirão da diáspora africana em que ele está mergulhado e as possibilidades de desfrutarmos de seus ingredientes urbanos espalhados pelo mundo. Liniker realiza essa síntese, a da tradição bem próxima (mãe dançarina e tios músicos, relativamente jovens) reinterpretada por um músico livre, talentoso, criativo e transgressor.
Liniker bombou com o EP “Cru” lançado na internet. Em menos de uma semana a música “Zero” teve mais de um milhão de visualizações. A cada canção, milhares de compartilhamentos. O público queria mais. Pedia mais. E, de maneira organizada, planejada, mais música e conteúdos foram oferecidos. A partir da repercussão surgiram os programas de TV, rádio, entrevistas e apresentações televisivas antes do primeiro show. Um fenômeno que o levou à lista dos 11 lançamentos mais aguardados de 2016, segundo a Billboard.
Liniker é sucesso, menção garantida nos papos de quem aprecia a acompanha a soul music no Brasil. Não é à toa que seu site recebe mais de 5 mil acessos diários. Porém, embora tenha ascendido de maneira muito rápida, nada indica que o sucesso será meteórico ou possa devorá-lo. O artista, além da qualidade estética do trabalho, demonstra com naturalidade os princípios éticos que o sustentam.
Percebi numa entrevista entremeada por apresentação da banda em um canal de TV, algo que me pareceu irritação de Liniker com tantas perguntas e tanto tempo do programa dedicados às suas roupas e acessórios (saias, turbantes, blusas de alça, macaquinhos, maquiagem, brincos grandes, pulseiras) em detrimento do tempo para a banda se apresentar e para falar de música.
Sem fugir às perguntas, ele as respondia de maneira objetiva e mantendo o humor: “Eu não sei se sou menino ou menina, eu sou esse que está aqui, no palco e nas ruas. Eu me visto assim sempre, isso faz parte de mim. Não é uma personagem”.
Liniker parece ter resolvido os eventuais problemas que seu estilo em trânsito (que nos deixa em transe) pudesse causar quando a mãe lhe deu um rímel de presente de aniversário, ainda na adolescência. Aliás, Liniker fala muito sobre a mãe, integrante daquele grupo de milhões de mulheres negras no Brasil e no mundo que educam os filhos sozinhas.
São mulheres que não têm outra opção além de protagonizar a educação dos filhos e o fazem com cuidado, respeito, amor e investimentos de toda ordem para oferecer-lhes lastro que lhes permita ser o que quiserem, quem quiserem, como quiserem. Como Liniker! Como Diogo Silva, herói brasileiro do taekwondo. Elas formam homens novos, que provavelmente respeitarão as mulheres, serão bons pais e companheiros, independente da orientação sexual.
Os créditos dos vídeos de Liniker nos informam que foram feitos de maneira colaborativa. Outro traço contemporâneo do artista polifônico que se define como “negro, pobre, gay e potente também” e que, numa entrevista recente convoca, “vamos viver nossas diferenças”.
No mais, Liniker quer falar do trabalho artístico. Ele domina a cena. Expressa compromisso consigo, com a própria verdade e com o público. Valoriza a tradição familiar. Cria letras envolventes, inteligentes, boas para curtir e para pensar/sentir no fluxo, sem perder o balanço.
Exceção é “Pra ela”, anterior ao projeto do EP “Cru”. Letra e música colegiais e sem o swing que nos tira do chão: “e assim que o dia amanhecer / pego meu violão só pra dizer / como eu gosto de você / o sol parou só pra te observar / a lua e as estrelas quiseram acompanhar / teu jeito de menina / teu sorriso de mulher”.
Mas isso em nada diminui sua grandeza. “Pra ela” é uma baladinha boba, própria para tocar no rádio, como as rimas pobres feitas pelo Skank e dezenas de bandas de pop-rock surgidas dos anos 1990 para cá.
A diferença é que na letra de Liniker a musa é negra (minha preta como gosto de te amar) e o cantor é um jovem negro que faz um clip inteiro andando pelas ruas de saia e camiseta. Dessa feita, sem maquiagem, o que reforça mais a ambiguidade da personagem, ou seja, não se trata de alguém tipicamente trans, reconhecível por encarnar certo estereótipo de travestis.
Gostosas mesmo são “Louise du Brésil” e “Zero”. O verso “passei pra dar um xêro / na Luiza mais Louise du Brésil” é cantado com um swing de tirar qualquer um do lugar. Há que balançar, ainda que apenas com os olhos e a cabeça.
“Zero” é o ápice do que foi apresentado até o momento. Diz a letra: “Me lembro do beijo em teu pescoço / do meu toque grosso / com medo de te transpassar”… o cantor começa de maneira muito suave, depois mostra que pode ser bem grave, se quiser. Noutra estrofe passeia pelos graves e agudos. O poeta requintado prossegue: “peguei até o que era mais normal de nós / e coube tudo na malinha de mão do meu coração”.
Viajamos ao som de Liniker, de carona num espaçozinho qualquer da malinha de mão do coração do cantor. Nós que somos tão normais não ficamos incólumes ao gemido final, novamente grave: “deixa eu bagunçar você / deixa eu bagunçar você”…