Publicado originalmente no Agência Narra
Por Ana Paula Souza, Bruno Sousa, Laerte Breno e Thaynara Santos
A palavra de ordem é resistência. A nova geração de crianças das favelas cariocas mostra que o racismo está perdendo espaço para o reconhecimento da negritude e a construção de autoestima na infância.
“Essa daqui é pra negra, ó. Eu sou negra, vocês tão vendo que eu sou negra?”. As palavras, afirmativas e empoderadas, vêm de Luiza Alves, que aos cinco anos se lançou na carreira de youtuber. No tutorial, a jovem apresenta uma base para seu tom de pele, bem como dá dicas de batons, brincos e perucas, esbanjando desenvoltura e carisma.
Pelas ruas do Morro da Caixa D’água, em Mesquita, na Baixada Fluminense, a criança aborda com confiança os tabus que os adultos evitam. Ao ser ofendida por um colega da vizinhança, a menina reagiu. “Corri atrás dele pra bater e fiquei gritando pra minha mãe que ele era racista, tinha me chamado de pão careca”. O termo é usado de forma pejorativa em relação a mulheres de cabelo crespo e curto.
Ao contrário de quem a insultou, a menina admira essas características e faz prova disso ao falar da mãe. “Olha, ela é toda linda, cabelo lindo, pele linda, rosto lindo”. A dona de toda essa beleza, Fernanda Alves, 22 anos, trabalha com o empoderamento da mulher negra pela estética por meio de sua marca de perucas — a Queen Laces. No entanto, a estudante de Publicidade na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nem sempre viu em si as virtudes mencionadas pela filha.
“Aos oito anos chegava em casa e chorava, não queria voltar à escola. Minha avó foi quem me criou, foi minha referência. Ela é racista num nível bizarro. Não aceita cabelo crespo nem o fato de eu ter tido uma filha com um homem negro de pele retinta e traços africanos. Ela joga isso na minha cara o tempo todo”, desabafa.
Para educar Luiza, a universitária utiliza novos parâmetros. Fernanda procura ser a principal referência da filha e apresenta conteúdos audiovisuais protagonizados por pessoas negras. Ao ser perguntada sobre a estampa da camisa, Luiza é enfática. “Essa é a princesa Moana, não é óbvio? Você não sabe quem é? A Tiana, a Moana, a Pocahontas”. A mãe intervém e sinaliza que Pocahontas não é negra. “Ah, é! A Pocahontas não é negra, ela é índia”, corrige.
É nessa nova geração que o orgulho da negritude está crescendo. A pouca idade não é mais barreira para trabalhar o tema dentro de casa. Moradora de Irajá, na Zona Norte, Thais Ferreira, mãe de João, Athos e Zion — de dois, quatro e seis anos — explica como funciona o racismo no Brasil. “A elite se mantém através das opressões raciais e sociais sobre a população negra e favelada. Caso essa lógica racista permaneça, em menos de 15 anos, meus filhos serão vítimas do projeto de genocídio que está em curso. Eles serão alvo dos mais diversos tipos de morte, seja social ou letal”, afirma. O Atlas da Violência 2017 aponta que a cada 100 pessoas mortas no Brasil, 70 são negras. A pesquisa é organizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Thais concorreu ao cargo de deputada estadual pela primeira vez em 2018 e alcançou mais de 24 mil votos. Sua plataforma de campanha priorizava o fortalecimento da identidade racial, a fim de que a nova geração possa se afirmar como herdeira de uma cultura ancestral africana. “Ontem, o sonho era ser paquita; hoje, é ser rei ou rainha de Wakanda. Isso é liberdade!”, compara a empreendedora social, em referência ao sucesso do primeiro super-herói negro protagonista dos cinemas.
Aula do dia: negritude
Ao som do tambor na roda de jongo, Cauê Santos, de nove anos, se conectou com seus ancestrais. A descoberta da manifestação cultural de origem africana deu abertura para refletir acerca da existência como criança negra. “A gente conversa sobre como ele se identifica, os privilégios que o branco tem e por que é necessário estudar”, explica a mãe, Letícia Santos, 36 anos.
Do jongo para a sala de aula, o aluno do quarto ano do Ensino Fundamental carrega os ensinamentos. Durante uma discussão sobre raça, Cauê afirmou sua negritude, porém a atitude foi debatida pelos colegas. “Alguns falaram que sou branco, mas eu disse: ‘não sou branco, não!’”, conta Cauê, que tem mãe negra e pai branco. Letícia aproveitou o episódio para introduzir outra face do racismo, o colorismo, explicando que “quem é mais pretinho sofre mais”.
“Eu sempre escutei da minha mãe: ‘você é preta, gorda, favelada, precisa se destacar, senão vai sofrer na vida’. É o que passo para ele, porque infelizmente é a realidade que a gente vive”, lembra a educadora.
Tammylis de Souza, de 15 anos, passou por algo parecido. Ao longo da infância, considerava a escola um ambiente hostil. “Eu me olhava no espelho e me achava diferente, porque era mais escura e tinha cabelo crespo, enquanto todas as meninas eram brancas de cabelo liso. Eu tinha vergonha e evitava tocar nesses assuntos, por isso alisei meu cabelo. Quando perguntavam a minha cor, eu a negava e dizia ‘sou branca, né?!’”, relata a moradora da favela da Carobinha, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Em 2016, uma atividade extraclasse a ajudou a se reconhecer como uma jovem negra. Desde então, a adolescente promove debates sobre o tema com as turmas da Escola Municipal Ministro Alcides Carneiro, onde cursa o nono ano. “Quando a identidade da criança é respeitada, a consciência racial deixa de ser um problema e se torna motivo de orgulho”, defende.
Tammylis salienta que a autoaceitação contribui para ocupar espaços frequentados principalmente por pessoas brancas de classe média. “Do meu bairro não conheço ninguém que faz faculdade, mas eu quero ser médica, para ajudar as pessoas e ser exemplo, como os professores são pra mim”, projeta.
Quem é o negro no livro de história?
Não é só no bairro de Tammylis que falta representatividade de negros em posições de exemplo. A escassez de referências também é percebida nos materiais didáticos. A socióloga e mãe de santo Flávia Pinto observa que a menção do negro se restringe à escravidão, sem considerar a contribuição a áreas de conhecimento, como ciência, arte e política.
Fatores como esse motivaram Flávia e outros ativistas a elaborarem a Lei Federal 10.639/2003, que estabeleceu o ensino obrigatório de história e cultura africana nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. Mesmo após 15 anos de vigência, a execução da medida ainda enfrenta obstáculos como a falta de formação dos profissionais e o preconceito.
Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Educação em 2015 constatou que apenas 7,6% das 105 escolas entrevistadas utilizam material didático referente à cultura africana, enquanto 92,4% não informaram se aplicam o conteúdo. Flávia destaca ainda as dificuldades na sistematização do conteúdo. De acordo com a socióloga, o debate racial geralmente é incentivado por um professor mais sensível ao tema e, por isso, defende a criação de uma disciplina específica sobre cultura africana. “Explico aos meus filhos que a gente pertence a uma tradição milenar, que é a tradição iorubá e de orixá. É algo muito forte, que os impulsiona para o mundo”, enfatiza.
Em “O cabelo de Cora”, a escritora Ana Zarco Câmara retrata uma menina de cabelo crespo que supera as críticas dos colegas e passa a gostar de seus traços físicos. A obra se tornou uma das favoritas entre as turmas da Escola Estrelinha, no Complexo do Alemão, onde a jornalista Carolina Marinho ensina literatura afrobrasileira aos alunos de sete a dez anos. Na grade curricular constam leituras de Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e histórias do folclore brasileiro. Segundo a educadora, a problemática do racismo é retratada de forma lúdica e divertida.
Não é bullying, é racismo
Quando questionado sobre o que é racismo, Cauê explica que “é tipo quando a pessoa xinga outra de ‘macaco’” e tem um passo a passo para casos de ofensa: “Respirar. Não chorar na frente da pessoa. Conversar com ela”. Foi o que tentou fazer ao ser chamado de ‘baleia’ por outra criança. “Eu falei assim: a gente tá aonde? No mar ou na terra? Aí eu perguntei, você pode ser o quê? O tubarão? Aí eu falei: eu posso te comer também”.
Especialista em Relações Sociais e Direitos Humanos, Vanessa Menezes de Andrade afirma que a cultura racista incide em todos os indivíduos, porém de formas distintas. “A criança branca é preparada para exercer o racismo devido às informações que recebe no cotidiano, como os brinquedos, a programação da TV, o carinho diferenciado de professores. A criança negra, por outro lado, aprende a desvalorizar a sua existência e a de seu semelhante e a ver no branco o padrão ideal”, avalia.
Diferente do que acredita o senso comum, racismo não é um tipo de bullying. Doutoranda em Psicologia Social pela UFF, Vanessa destaca que o racismo não é uma particularidade de crianças na escola. “O bullying é uma violência institucionalizada no ambiente escolar, objetiva amedrontar a vítima. Já o racismo é um processo histórico. Tem a ver com a estrutura do nosso país, está presente em todos os espaços e não é exclusividade da escola. Daí a importância de uma educação antirracista permanente e de lidar com o ato racista como político, não uma ação individual”, defende.
É esse o legado que Fernanda quer proporcionar a Luiza, uma educação sem tabus. “Tem que falar sobre homossexualidade, sobre drogas, sobre tudo, parar de achar que com excesso de proteção e preconceitos está criando um filho bom. Na verdade, você tá construindo homens machistas e mulheres sem consciência do que elas podem ser ou fazer”.