Artigo publicado originalmente no blog do jornal Die Tageszeitung
Desde dezembro de 2017, segue no Brasil a luta por reparação da Volkswagen do Brasil pela sua colaboração com os órgãos repressivos da ditadura militar. Agora, a Volkswagen do Brasil declarou, surpreendentemente para todas as partes envolvidas, que irá suspender as negociações em andamento. A Latin@rama obteve a informação com círculos bem informados e diretamente envolvidos nas negociações, que estão em andamento desde dezembro de 2017. A Volkswagen do Brasil, em comunicado oficial ao Ministério Público, declarou que a participação de representantes da empresa nas negociações será suspensa por enquanto, pois a empresa está sofrendo prejuízos financeiros em decorrência da pandemia do novo coronavírus.
A luta não é apenas por compensação, mas também de verdade e justiça histórica. Desde o final de 2017, as vítimas afetadas, os sindicatos e as organizações de direitos humanos haviam conseguido vitórias claras na disputa sobre a admissão de culpa e responsabilidade e o futuro pagamento de indenizações pela VW do Brasil.
Parecia que, apesar da distância histórica, finalmente tinha sido possível provar que a empresa alemã era responsável, juntamente com as estruturas repressivas da ditadura militar brasileira, por violações de direitos humanos e que uma admissão formal de culpa, um pedido de desculpas público e uma compensação individual para os trabalhadores afetados ou seus parentes remanescentes, bem como o pagamento de indenizações coletivas, seriam feitos.
Sobre a reparação coletiva, várias propostas foram feitas desde dezembro de 2017. As principais são aquelas que vêm dos grupos de direitos humanos exigindo financiamento para a criação de um amplo museu da memória e de um fundo para pesquisas posteriores sobre a colaboração de outras empresas brasileiras e multinacionais com os órgãos da ditadura militar.
As negociações haviam sido iniciadas sob a supervisão do Ministério Público. De um lado, estão envolvidas as instituições e personalidades que, em 22 de setembro de 2015, sob a liderança do Fórum de Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação, apresentaram uma denúncia ao Ministério Público: trabalhadores que foram entregues pela VW do Brasil aos órgãos repressivos da ditadura militar ou que foram discriminados e perseguidos no trabalho por causa de suas opiniões políticas – que recentemente fundaram a Associação Heinrich Plagge para melhor representar seus interesses – todas as Centrais Sindicais brasileiras e os sindicatos locais de São Bernardo, onde está localizada a grande fábrica da VW do Brasil, além de vários defensores dos direitos humanos. Do outro lado: Volkswagen do Brasil.
A agora declarada retirada unilateral da Volkswagen do Brasil do processo de negociação é outro escândalo que a Volkswagen do Brasil está empreendendo na luta pelo reconhecimento e pela responsabilidade que há anos vem latente.
Desde o final de 2015, o Ministério Público Federal investiga a colaboração da Volkswagen do Brasil com os órgãos repressivos da ditadura militar brasileira em um Inquérito Civil Público (IC 1.34.001.006706/2015-26 – MPF). Em 22 de setembro de 2015, o Fórum de Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação apresentou uma denúncia contra a Volkswagen do Brasil ao Ministério Público Federal, em São Paulo.
Com esta denúncia, a aliança, formada pelos atingidos, sindicalistas, advogados, movimentos sociais e grupos de direitos humanos, quis iniciar investigações para esclarecer todo o envolvimento da Volkswagen do Brasil nas estruturas repressivas da ditadura militar brasileira. A acusação é baseada em declarações feitas por testemunhas chaves e vítimas de tortura como Lúcio Bellentani e outros perante as diversas Comissões de Verdade, bem como em vários documentos localizados em arquivos da polícia política para provar a colaboração da VW com as autoridades repressivas.
No final de 2017, foram apresentados dois estudos históricos. Um foi escrito pelo historiador da Universidade de Bielefel (Alemanha), Christopher Kopper. A pesquisa foi encomendada pela então integrante da diretoria da VW, a senhora Christine Hohmann-Dennhardt e foi publicada em São Bernardo do Campo em dezembro de 2017. O outro é do ex-delegado de polícia Guaracy Mingardi, que o preparou como perito oficial do Ministério Público Federal, publicado pouco antes do relatório de Kopper.
O relatório Mingardi confirmou que o comportamento dos funcionários da empresa Volkswagen “envolveu não só a colaboração através da troca de informações, mas também repressão ativa da empresa contra funcionários”. As declarações dos ex-funcionários da VW Lúcio Bellentani e Heinrich Plagge, que declararam terem sido capturados no local de trabalho na presença das forças de segurança da empresa por agentes da polícia política e levados de lá para o centro de tortura do DOPS, são explicitamente confirmadas pela pesquisa de Mingardi.
Mingardi também confirmou o depoimento de Heinrich Plagge. Ele havia dado seu testemunho aos promotores em meados de 2017. Em 8 de agosto de 1972, ele foi chamado ao escritório do gerente da VW do Brasil, Ruy Luiz Giometti, por volta das 14 horas, onde, além de Giometti, duas pessoas desconhecidas o aguardavam e efetuaram sua prisão. Plagge foi sequestrado e levado para a DOPS, onde foi torturado por 30 dias. Depois, foi transferido para uma prisão, de onde seria libertado em 6 de dezembro – cerca de quatro meses após seu sequestro. Em 22 de dezembro de 1972, 16 dias após ser solto, ele recebeu o aviso de demissão Volkswagen.
O Relatório Kopper, por sua vez, também confirmou a colaboração da VW do Brasil com os órgãos repressivos:
“Em 1969, iniciou-se a colaboração entre a segurança industrial e a polícia política do governo (DEOPS), que só terminou em 1979. Essa colaboração ocorreu especialmente através do chefe do departamento de segurança industrial Ademar Rudge, que devido a seu cargo anterior como oficial das forças armadas sentia-se particularmente comprometido com os órgãos de segurança. Ele agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria. Uma vez que não havia obrigação legal de informar sobre manifestações de opinião da oposição, o chefe da segurança industrial, no monitoramento e na denúncia das atividades da oposição do pessoal, agia em responsabilidade própria e com uma lealdade natural ao governo militar. Apesar de não ser possível determinar com exatidão o grau de participação da segurança industrial na descoberta e prisão de um grupo comunista ilegal, uma atitude menos cooperativa da segurança industrial poderia ter ao menos adiado e possivelmente evitado as prisões. A segurança industrial monitorava as atividades de oposição dos empregados e facilitou com a sua denúncia a prisão de no mínimo sete empregados e empregadas. Isso ocorreu em uma época, na qual a prática de tortura da polícia política já era de conhecimento público na Alemanha e no Brasil.”
É notável como a Volkswagen lidou com as conclusões do Relatório Kopper no comunicado de imprensa emitido pelo Grupo Alemão em vários idiomas, na ocasião de sua publicação. Nele, Volkswagen afirmou que “houve cooperação entre os membros individuais da equipe de segurança da fábrica Volkswagen do Brasil e a Polícia Política (DOPS) do antigo regime militar”. No entanto, afirmou a nota de imprensa da Volkswagen do Brasil, não foi possível encontrar evidências claras de que a cooperação tenha sido baseada em ações institucionais por parte da empresa.
Então, somente casos de “membros individuais da equipe de segurança da fábrica da Volkswagen do Brasil”? Christopher Kopper escreveu clara e inequivocamente em seu relatório, porém: o chefe da segurança da fábrica, Adhemar Rudge, agiu “agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria”. Isso não soa como um ato isolado de algumas pessoas. Se a diretoria da VW do Brasil, que estava autorizada a emitir instruções, sabia disso, e se, como escreve Christopher Kopper, “a prática de tortura da polícia política já era de conhecimento público na Alemanha e no Brasil”, então a diretoria da empresa, naquela época, aceitou conscientemente e com aprovação que seu serviço de segurança da fábrica, que estava subordinado às instruções do órgão de diretoria da empresa, entregava pessoas à tortura. Se isso não for auxílio e incentivo à tortura, o que é?
Mas a situação fica ainda pior para a gestão da VW do Brasil. Christopher Kopper atestou: “A VW do Brasil foi irrestritamente leal ao governo militar e compartilhou os seus objetivos econômicos e de política interna”. Mas não foi só isso, como mostra o relatório do especialista do Ministério Público Federal brasileiro. Guaracy Mingardi cita um documento dos arquivos do serviço de inteligência doméstico da ditadura militar, o SNI. É um telex datado de 11/09/1975, que foi emitido pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social. O conteúdo: Adhemar Rudge, chefe de segurança da fábrica da VW, explica nele o procedimento de criação e transmissão de dados aos órgãos de serviço secreto: “que os dados conhecidos foram assim apresentados ao Diretor presidente porque, além do apoio a conduta as operações de informações, o Presidente tem responsabilidade na liberação de outros apoios, em caráter permanente, que são prestados aos OI de são Paulo; o Diretor Presidente, Sr. Wolfgang Sauer, desejando inteirar-se melhor da situação e interpretá-la com o assessor jurídico, dr. Jacy Mendonça, advogado da empresa, solicitou aqueles dados conhecidos ao chefe de segurança (…)”.
O especialista Guaracy Mingardi concluiu: “Fica claro que o setor de segurança da Volkswagen estava afinado com o SNI; e principalmente que havia ainda conhecimento por parte das atividades pelo Diretor Presidente da empresa, o qual teria a possibilidade de liberar ‘outros apoios’ aos órgãos de informação”. Isso parece muito mais do que a tese da VW no comunicado de imprensa sobre casos de “membros individuais da segurança da fábrica da Volkswagen do Brasil”.
A pergunta pertinente “quanto os gerentes da empresa sabiam, quais responsabilidades tinham as lideranças da empresa?” parece estar inevitavelmente apontando nessa direção: a alta cúpula da VW do Brasil sabia do modo de agir do pessoal de segurança da fábrica sob sua direção e que as informações eram transmitidas aos órgãos repressivos da ditadura militar brasileira. E provavelmente até mais: o chefe da VW do Brasil, Wolfgang Sauer, mandou que as informações compiladas por Rudge primeiramente passassem por sua mesa para aprovação antes de serem transmitidas aos agentes da repressão. Como escreve Christopher Kopper, tudo isso ocorreu numa época em que “a prática de tortura da polícia política já era de conhecimento público na Alemanha e no Brasil”. Então, fica a pergunta: como tudo isso não pode ser interpretado como uma ajuda deliberada e colaborativa à tortura pela diretoria da Volkswagen do Brasil? Ninguém em sã consciência pode levar a sério o argumento que eram somente casos individuais de alguns membros da equipe segurança da Volkswagen. O antecessor de Sauer também teve pleno conhecimento da prática da tortura no Brasil naquela época. Em 16 de fevereiro de 1973, o jornalista Manfred von Conta citou, em artigo ao importante jornal alemão Süddeutsche Zeitung, o então chefe da VW do Brasil, Werner Paul Schmidt:
“Claro”, diz ele entre dois goles de suco de tomate, “a polícia e os militares torturam os prisioneiros para obter informações importantes”, “claro, o subversivo político muitas vezes nem sequer vai ao tribunal, porque se atira nele imediatamente. Mas o jornalismo (alemão) deveria objetivamente incluir nas reportagens o fato de que, sem dureza, as coisas simplesmente não vão adiante. E, hoje, estão indo adiante”. 16 de Fevereiro de 1973 no Süddeutsche Zeitung
A tese da “ação individual”, defendida pela VW do Brasil, e a exclusão da co-responsabilidade da direção da empresa por sua colaboração ativa com a ditadura militar brasileira é uma farsa. Mas apesar desta linguagem escolhida, absolvendo em grande parte a própria empresa de sua responsabilidade histórica, a VW, como resultado da pressão pública, concordou em participar das negociações para o pagamento de indenizações, mediadas pelo Ministério Público. Em dezembro de 2017, o Handelsblatt, jornal econômico alemão, informou que a sede do Grupo VW em Wolfsburg queria fazer o pagamento de indenizações. “Do lado alemão, há um amplo consenso de que o dinheiro [de indenizações] deve ser pago. A Volkswagen queria criar um novo fundo de vítimas para este fim, a partir do qual seriam alimentados os pagamentos da indenização. No entanto, a ideia da Alemanha não recebeu muita aprovação dos colegas sul-americanos da Volkswagen (leia-se: VW do Brasil). Eles advertiram fortemente contra o pagamento de indenizações. ‘Isto vai ser sem limites, a Volkswagen está fazendo um grande alarde a respeito’, informou a administração brasileira à sede em Wolfsburg [alertando para não abrir a caixa de Pandora]. As consequências financeiras seriam incalculáveis. No final, os sul-americanos [leia-se: a VW do Brasil] prevaleceram, então, não haverá fundo de compensação”.
Agora, com a anunciada retirada unilateral das negociações indenizatórias, a direção da filial da VW em São Paulo voltou a afirmar sua atitude de bloqueio contra as diretrizes da Wolfsburg?
Quanto mais tempo passar, menos chances há de que as últimas pessoas afetadas vivam o suficiente para ver a reparação. As duas testemunhas mais importantes e vítimas da colaboração da Volkswagen do Brasil com a ditadura militar brasileira já faleceram. Heinrich Plagge faleceu em 6 de março de 2018. Um ano depois, em 19 de junho de 2019, faleceu Lúcio Bellentani. Décadas ignorando, negando, e agora um novo recuo – a VW do Brasil mais uma vez vai além do aceitável.