“Xi, Lula e Putin, novos mestres do mundo?”: Revista francesa compara Brics a Conferência de Yalta

Atualizado em 6 de setembro de 2023 às 11:53
Revista francesa Marianne projeta Xi Jinping, Lula e Putin em imagem da Conferência de Yalta

 

Os BRICS vem chamando cada vez mais a atenção da imprensa dos países ricos. Na França, é o que ilustra a capa da centenária revista Marianne.

“Cúpula dos BRICS: uma nova Yalta sem nós?”, intitula a capa da primeira edição de setembro.

“Os grandes países emergentes reunidos nesse clube chamado Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – acaba de acolher novos membros poderosos, com o Irã ou a Arábia Saudita. E outros países virão sem dúvida aumentar suas tropas. Seu projeto é desafiar o Ocidente? Como esperam se organizar? Quais posições vai adotar a França, com sua diplomacia tão singular?”, questionam os jornalistas Franck Dedieu e Alain Léauthier.

Para a publicação, os BRICS ilustram uma aceleração da história, principalmente pela incorporação dos novos membros, o que lembra uma citação de Lênin. “Há décadas em que nada acontece e semanas em que décadas se passam”, menciona.

“Quem teria imaginado, há não muito tempo, que os irmãos inimigos do Islã, o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita, se reconciliariam sob a égide da China, antes de entrar no “Brics a 11″ a princípios de 2024?”

Emirados Árabes e Argentina, além dos inimigos “irreconciliáveis” Egito e Etiópia. “A soma de todos seria tão impressionante tanto no plano demográfico quanto em termos de PIB que rapidamente voltamos aos manuais de história para remontar a 11 de fevereiro de 1945”, compara.

A alusão é à data da Conferência de Yalta, em que Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética definiram os contornos da ordem mundial após o fim da Segunda Guerra.

“Naquele dia, em Yalta, Roosevelt, Stalin e Churchil teriam dividido o mundo sem consultar os povos afetados”, lamentam os franceses, que não haviam sido convidados.

A comparação se complementa com uma novidade. “O acordo assinado dia 24 de agosto em Joanesburgo entre os fundadores dos Brics e novos parceiros tem outra lógica: os países outrotra dominados, principalmente por impérios coloniais, associam suas forças para pesar diante de potências, dotando-se do privilégio de organizar o controle do Velho Mundo”.

“Conscientes de sua força, esses grandes Estados do terceiro Estado mundial querem contar”, diz a revista, projetando na política internacional atual as categorias do período anterior à Revolução Francesa. Terceiro Estado designava a plebe. “Ou se tornar alguma coisa”, em citação de Sieyès no periodo pré-revolucionário.

“Evidentemente não há declaração de direitos do homem e do cidadão no horizonte mas agregados econômicos a mostrar, tudo muito convincente nesse mundo de contadores tão distante dos heróis da guerra posando para a célebre foto”.

A publicação satiriza a então imagem da Conferência substituindo os rostos dos líderes de Yalta pelos de Xi Jinping, Lula e Vladimir Putin.

“Claro que a História não se faz conforme previsões econômicas. Mas esses PIB com múltiplos bilhões permitem a esses países contemplar a categoria que falta: a dos negócios. Eles alinham uma demografia em crescimento (3,3 bilhões de habitantes), ocupam uma superfície gigantesca (27% da superfície da Terra), inevitáveis economicamente. A tríade ‘população-dimensão-dinheiro’ não pode deixar indiferente”.

Críticas e limites

Como diversos veículos de imprensa na França, Marianne sublinha a divergência de interesses dos países-membros.

“Então, evidentemente, por trás dessas incorporações de potências se escondem interesses divergentes, por exemplo entre China e Índia no plano militar, religioso e comercial (…). Em seguida, o regime democrático brasileiro não corre o risco de se diluir no autoritarismo chinês ou ruso? Claro, essa Torre de Babel, como um desafio lançado ao deus Ocidente, deverá afrontar dilúvios”, prevê.

“Ela não apresenta nenhuma logica geográfica, diferentemente da América do Norte e da União Europeia. Pertencer ao ‘Sul global’ ou mostrar grandes PIB não faz um ethos, como diziam os gregos para qualificar esse sentimento de destino comum, indispensável à sobrevivência de uma entidade política”, critica.

O hebdomadário francês pergunta o que poderia sustentar o bloco dos BRICS e acredita que seu presidente talvez encontrou a resposta. “Ha uma fascinação pelo autoritarismo […]. A crise das democracias é primeiramente uma crise de eficácia”, dizia Macron à revista Le Point no final de agosto.

“Bela confissão. O Ocidente tinha nas mãos duas vantagens: a democracia liberal e o capitalismo regulado. A associação dos dois prometia liberdade e prosperidade”, sustenta Marianne.

“No final das crises, esse mundo liberal supostamente plano revelava na verdade fossos financeiros, rasgos identitários e precipícios sanitários… Ora, e se, para citar o presidente, a ‘eficácia’ não se encontrasse mais no Ocidente, mas tivesse passado para o outro lado, os Brics?”.

 A revista cita um estudo australiano que aponta a liderança da China em 37 setores de tecnologia entre 44 analisados. “Esses resultados podem dar uma ideia de futuros prêmios Nobel”.

Os jornalistas de Marianne não acreditam, no entanto, que os Brics possam avançar sem a Europa e os Estados Unidos. “Países com produtos indispensaveis para o resto do mundo mas ainda não autossuficientes. Na verdade, longe disso, tendo em vista as importações-exportações ‘intra-Brics’, para retomar os economistas, representavam 2,5% das transações mundiais”, aponta.

“Sem dúvida falta o nervo da guerra comercial: a moeda. Seu Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), criado em 2014, tenta conceder financiamentos em rúpias indianas, estimular a utilização de rands sul-africanos, planificar futuras montagens financeiras com o poderoso fundo soberano da Arábia Saudita, mas o bom velho dólar permanece a moeda de pagamento e a moeda de reserva incontornável para esses Brics”.

Século do Sul global

Por um lado, os BRICS são vistos como ferramenta de uma nova dominação chinesa. “Mas é difícil negar a emergência de novos conjuntos geográficos movidos por ambições diversas e mutantes. O que compõe a China e seus satélites conduz uma boa parte da paisagem à confrontação.”

“Primeiramente econômica, o ‘enriqueçamos e fiquemos discretos’ caro a Deng Xiaoping finalmente durou o bastante antes que a necessidade de conquistar novos espaços úteis a esse enriquecimento mude o jogo. Essa conquista tem seu Napoleão. Ele se chama Xi Jinping e também estima que o império é a melhor escala”.

Para quebrar a dominação americana, “os Brics são uma formidável ferramenta.”

A revista ainda assim faz uma ponderação. “Mas cuidado para não restringir o grupo a uma banal frente antiocidental manipulada por um autocrata cínico, ou uma assembleia de dirigentes antidemocráticos”.

Marianne cita um geopolitólogo radical para classificar os membros do Brics nao como nao-alinhados, mas “desalinhados” e “desalienados”.

“Há algo de uma psicologia política comum a todos esses múltiplos países tendo em comum geralmente apenas o rechaço a imposições ocidentais bastante enfraquecidas”. “Agora é a nossa vez e esse será o nosso século!”, cita.

Eles seriam “realinhados” no sentido de buscar segundo as circunstâncias os benefícios com o país que lhes proporciona, seja com o gás da Rússia, ou com a influência da Turquia, membro da OTAN.

A publicação indica um certo olhar positivo que suscita o novo cenário global no setor progressista para depois levantar a dúvida.

“Os progressistas querem ver nesse renascimento de blocos antagonistas, e de dimensão eventualmente imperial, o ‘triunfo do Sul global’ sobre o ‘Ocidente coletivo’. E se o jogo fosse bem mais incerto?”