Publicado no Justificando
POR MARCOS V. GONTIJO
Nas atuais circunstâncias, seria um prazer dizer que o discurso do presidente Bolsonaro na ONU atendeu, no dia 24 de setembro, às expectativas.
No entanto — para nossa infelicidade — Messias Bolsonaro conseguiu superar àquelas, mais uma vez. Superou, aliás, em todos os pontos: negou o desmatamento ou seu aumento ao dizer que a Amazônia “não está sendo devastada nem consumida pelo fogo como diz mentirosamente a mídia”, apesar de, ao início do seu discurso, imputar aos indígenas e populações locais pelos incêndios; afirmou que médicos cubanos trabalharam como escravos (sic) no Brasil em acordo com o governo cubano — e, como todo aquele que mente, acrescentou “acreditem!” —; repetiu a balela sobre tentativas passadas de instauração do socialismo — ideologia, ideologia e mais ideologia, “táoquei?” — e, para finalizar, teve o descaro de afirmar que “acabou o monopólio” do líder indígena Raoni, endossado pela presença da indígena Ysani Kalapalo na comitiva brasileira, como suposto apoio dos povos originários ao governo Bolsonaro.
Ao invés de discursar paras as lideranças dos demais países à procura de uma interação que se fundamentasse na necessidade de construção de alternativas para a saída da crise econômica, social, política e climática sofrida em escala global, Bolsonaro discursou para as duas únicas plateias que tem se dirigido nos últimos anos: o seu séquito fiel de eleitores retrógrados e o empresariado sedento por ganhos absurdos às custas da população brasileira, sobretudo da camada mais pobre que a cada dia se alarga mais e mais. Até aqui, nada de novo sob o sol.
Contudo, a decisão de levar a indígena Kalapalo como quem exibe um artefato dando provas da diversidade da terra — os poucos mais de cinco séculos não foram suficientes para separar Bolsonaro de Colombo — parece ter sido, muito provavelmente, uma tentativa falha de colocar panos quentes na opinião internacional sobre o poder de gerência e fiscalização da Amazônia pelo Estado Brasileiro. Bolsonaro, ademais, reafirmou, com uma dicção que não acompanhou a tentativa de demonstrar sua firmeza “empreendora” — um abraço aos seus colegas do hobby garimpeiro! —, que era líder de um Estado soberano e de um governo patriota. Mas, na contramão, tem abraçado — como a própria tentativa de resposta por meio da presença de Kalapalo — a resistente síndrome do vira-lata.
Nesse sentido, o passado pode nos ser bastante alusivo: o homem branco, patriarcal e devoto à Igreja e à Coroa, encontrado na pessoa de Colombo, sequestra e leva um grupo de indígenas, sob condição de espécimes da terra, para apreciação e curiosidade da corte espanhola. O que na obra Possessões Maravilhosas, Stephen Greenblatt[1], denomina como “linguagem do rapto”, o esvaziamento da alteridade, a captura e posterior preenchimento de significados que partem do Eu, daquele e da cultura que colonizam. Não haveria, nesse sentido, um interesse na compreensão do outro — o que é exposto na relação de posse expressa na fala de Bolsonaro, “nossos nativos”, no lugar de “nós brasileiros e nossa diversidade” —, o que culmina em sua inserção violenta em uma amálgama de significados que lhes são estranhos.
O caso de Ysani Kalapalo inclui uma outra relação, esta também analisada por Greenblatt: a do intermediário. Se o rapto num primeiro momento servia como exposição do exótico e do maravilhoso do nativo na Europa, num segundo momento, a conquista exigia intérpretes, isto é, intermediários entre indígenas e colonos. A saída encontrada, dessa vez por Hernán Cortés, não foi a de compreender a diferença e inserir-se na cultura do outro, mas a de cooptá-lo, isolá-lo de seu lugar de pertença e força-lo ao convívio de uma cultura que lhe era estranha. O intérprete, desse modo, era uma figura dupla, pertencia a uma cultura e era coagido por outra (a depender da resistência do sujeito). Ao comunicar-se por meio de intermediário se subentendia na pessoa deste uma similitude, a capacidade de fala, de raciocínio e de compreensão de ambas as línguas e culturas. O intermediário era, sobretudo, o tradutor do testemunho do que fora encontrado ao longo da viagem. Porém, Greenblatt demonstra como esse era mais um caso de “obstrução”, pois o colono identificava a similitude naquilo que não compreendia e necessitava de um mediador, todavia, alienava-o, ao esperar a transcrição daquilo que não compreendia nos termos de sua própria cultura. Isto é, repetia o processo de esvaziamento simbólico do Outro.
Desses “intermediários”, a história de Malintzin, Doña Marina ou, como é mais conhecida, Malinche, irrompe diante de nossos olhos ao assistir o papel que se prestou a indígena Kalapalo. Malinche foi uma indígena sequestrada e utilizada como intérprete na Conquista do México, possibilitando a tradução linguística entre seu povo e os conquistadores espanhóis. A expressão “La Malinche!” passou então a representar o lugar na história que fora relegado à indígena, o de uma traidora. Apesar da profunda diferença das circunstâncias históricas que envolvem Doñã Marina e Yansi Kalapalo, a situação não deixa de incomodar e revirar o imaginário político latino-americano no que concerne a situação delineada entre o discurso de Bolsonaro, Kalapalo e as cinquenta e duas etnias supostamente representadas pela carta lida pelo presidente durante a assembleia.