Zema perdeu no projeto de exterminar o Quilombo Campo Grande. Por Marcelo Auler

Atualizado em 15 de agosto de 2020 às 12:57
Fotos: Isabelle Medeiros/ Mídia NINJA

PUBLICADO NO BLOG DE MARCELO AULER

POR MARCELO AULER

Os apelos vieram de todos os lados, de pessoas e autoridades das mais diversas tendências políticas, mas contrariando suas promessas feitas no início da semana, o governador Romeu Zema (Novo) não impediu que a Polícia Militar de Minas Gerais aterrorizasse por mais de três dias as cerca de 450 famílias de agricultores assentadas no Quilombo Campo Grande, no município de Campo do Meio, no sul de Minas Gerais. São famílias ali instaladas há 22 anos que transformaram a área de uma usina de açúcar falida em campo de produção de alimentos orgânicos.  A violência contra elas aumentou na tarde de sexta-feira (14/08). A repercussão negativa foi tamanha que no final do dia o Batalhão de Choque se retirou do local dando por encerrada a operação. Os ânimos serenaram.

Ao final da operação policial seis famílias foram desalojadas, a Escola Popular Eduardo Galeano, que oferecia educação popular aos jovens, crianças e adultos, foi totalmente destruída e um galpão que atendia aos agricultores foi esvaziado. A mobilização dos agricultores e o apoio que receberam de diversos setores da sociedade, porém, impediram que a ameaça maior – o desalojamento de todos – fosse concretizada. Apenas um pedaço da área – ainda que superior ao previsto – foi oficialmente reintegrada.

Em uma atitude inédita de espetacularização da operação, a ação da polícia militar mineira contou até com transmissão on line  (veja aqui). Nela, os oficiais alegavam que apenas cumpriam uma ordem judicial. Ordem que não se preocupou com a pandemia. Por isso, o despejo foi considerado “como um grave desrespeito e uma ameaça à vida em meio ao caos estabelecido pela pandemia, e torna-se um verdadeiro crime contra estas famílias” pelos bispos da Regional Leste 2 da CNBB. Como afirmaram em nota assinada por dom José Carlos de Souza Campos (da diocese de Divinópolis/MG) e dom Otacílio Ferreira Lacerda (da diocese de Guanhães/MG), respectivamente, presidente e bispo referencial da Comissão para Ação Social Transformadora da Regional Leste 2 da CNBB.

O tamanho da operação montada – mais de 250 policiais, incluindo o batalhão de choque com caminhão blindado (tipo brucutu), caminhões do corpo de bombeiro e até helicóptero, cujos voos visavam atemorizar as pessoas – transformou-se também em um sinal claro que o objetivo não era cumprir apenas a ordem judicial.

A determinação, inicialmente, falava em reintegração de 26 hectares. Depois, o próprio juízo aumentou para 52 hectares. Segundo nota do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a operação policial foi além do que ordenava a liminar. Ainda destruíram casas e lavouras. Mas, na realidade, o aparato policial faz supor que a pretensão do governo Zema seria de exterminar o quilombo. Foi impedido pela resistência dos agricultores.

Isto explica, inclusive, o fato de terem isolado a área de tal forma que até deputados tiveram o acesso impedido, como denunciou a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT): “fomos impedidos pelo Comando Militar da operação na área de entrar pela via pública de acesso para nos encontrarmos com as pessoas. Questionado, afirmou que a operação de reintegração de posse não tinha terminado e que ele tinha protocolos a seguir. Informei que, como deputada estadual, tinha a prerrogativa de entrar, que os protocolos da Polícia Militar não são superiores a Constituição do Estado. Obtive como resposta de um Major voz de prisão se insistisse. Depois da ameaça do Comandante, dois sargentos começaram a filmar”.

A avaliação da deputada, que esteve no quilombo na sexta-feira em companhia dos deputados federais Rogério Correia e Odair Cunha e seus colegas na assembléia de Minas André Quintão e Ulysses Gomes, é de que o governo pretendia ir além do que mandou o juízo:

“Após analisar toda a operação montada, não resta dúvidas: Zema aparelhou o governo, gastou dinheiro público para fazer uma disputa ideológica e política, além de autorizar a prática de violência contra a população. Nada teve a ver com cumprimento de decisão judicial (…) três dias de operações, fora o tempo de deslocamento, diárias, hospedagens, alimentação. Tudo pago com dinheiro público para retirarem e destruírem a casa de 6 famílias, além da escola. O plano do governo era maior”.

Os policiais militares – “agindo dentro da lei e em cumprimento às ordens”, como definiu o oficial no vídeo – na quarta-feira, 12 de agosto, não impediram a destruição da escola feita, segundo dizem os policiais, por familiares do dono do terreno. O ato foi recriminado pelo bispo-auxiliar de Belo Horizonte, dom Vicente Ferreira: “De lamentar que a escola já está destruída. Infelizmente, em um tempo em que a gente precisa de mais educação”, protestou, na quinta-feira.


Ou seja, havia margem para o governo do estado adiar o despejo. Inclusive atenderia às recomendações de infectologistas que se posicionaram contrários ao desabrigo de pessoas em plena pandemia. Mas Zema não apenas desrespeitou o prometido como deixou a polícia militar fazer uma verdadeira guerra psicológica contra os moradores por três dias seguidos – de quarta-feira (12/08) até sexta-feira no final da tarde.
Desde o início da semana o governador Zema prometia suspender o despejo. Também o prefeito de Campo do Meio, Robson Machado de Sá (PSDB), dizia que apenas uma pequena área seria reintegrada. As promessas do governador, feitas pela rede social, falavam em deixar tudo para o pós-pandemia. Isso não parecia impossível. Afinal, o próprio Tribunal de Justiça, em nota (leia na ilustração ao lado), esclareceu que a ordem de despejo, datada do ano passado, teria que ser cumprida,  “entretanto, a avaliação a respeito da segurança do despejo está sendo feita pela Polícia Militar.”

 

“Despejar não é atividade essencial”, diz o bispo.

A promessa do prefeito foi feita ao bispo da diocese de Campanha (que engloba a região do acampamento), dom Pedro Cunha Cruz. Em pronunciamento por áudio aos demais bispos do país, dom Pedro, da ala conservadora da igreja, relatou sua conversa com o prefeito, na manhã de quinta-feira, quando ouviu que a operação já tinha ocorrido. O que não correspondeu à verdade:

“Em conversa com o prefeito Robson, de Campo do Meio, o mesmo assegurou que o despejo foi realizado ontem (12/08) somente nas residências de seis famílias que ocupavam uma área de propriedade privada, mas que não têm nenhuma relação com as 450 famílias que ocupam a área da antiga usina. A prefeitura de Campo do Meio já acolheu as três famílias despejadas deste terreno. Portanto, as 450 famílias da área da usina ainda permanecem no local e provavelmente sofrerão alguma ação judicial no pós pandemia”.

Dom Pedro terminou sua mensagem aos irmãos do episcopado prometendo genericamente seguir “rezando por estas famílias dentro do espírito do Pacto pela Vida e da ética do cuidado, como pede o nosso querido Papa Francisco”.

Como lembrou a nota oficial dos bispos da Regional Leste 2 da CNBB, o Papa Francisco, no I Encontro Mundial de Movimentos Populares, foi claro e direto:

“É necessário democratizar a terra com a Reforma Agrária Popular para que esta cumpra a sua função social, o que nos garantirá nesse atual contexto a segurança e soberania alimentar e laboral às futuras gerações”

Quem demonstrou maior sintonia com esta diretriz do pontífice foi o bispo auxiliar de Belo Horizonte, dom Vicente. Ele colocou acima do interesse da propriedade privada a defesa da vida. Principalmente em época de pandemia. Fez diversos pronunciamentos pedindo a suspensão do despejo. No último, na manhã de quinta-feira (vídeo abaixo), protestou, inclusive, por a polícia reintegrar uma área maior do que a determinada judicialmente:

Ao prosseguir, foi solidário com as famílias atingidas:“A continuidade deste despejo, hoje, está extrapolando, inclusive, a área prescrita para ser integrada. Quanto o estado está gastando com esta operação, inibindo as pessoas, cercando a cidade? Quantas pessoas estão sendo infectadas pelo coronavírus durante esta operação? Basta de despejo. Peço mais uma vez ao governador do estado de Minas Gerais e ao presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que suspendam este despejo e proíbam outros durante a pandemia”.

“Despejar não é atividade essencial. Exigimos despejo zero! Abraço solidário, inclusive, a todas as famílias e todas as comunidades que estão na resistência. Que lutam por terra, moradias e vida digna. E lamentar que a escola já está destruída. Infelizmente, em um tempo em que a gente precisa de mais educação. Espero que agora as operações não destruam também a horta e, pelo amor de Deus, jamais a vida de nossas pessoas”.

Usina faliu e deixou dívidas com a União e MG

Por entenderem que esta reintegração de posse com o uso da força policial se encaixa também na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, no último dia 5/08, impediu operações policiais em comunidades durante a pandemia, quatro deputados do PT tentaram obter uma decisão no STF. Rogério Corrêa (MG), Enio Verri (PR), Helder Salomão (ES) e João Daniel (SE) ingressaram com um pedido de extensão da decisão para paralisar o despejo. O pedido está nas mãos do ministro Alexandre de Moraes.

A disputa por estas terras é antiga, uma vez que a Usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool S/A, instalada na área, faliu em 1996. Deixou dívidas de R$ 370 milhões junto à União e outros R$ 19 milhões ao estado de Minas. Também não ressarciu os trabalhadores demitidos. Isso motivou a ocupação do local, a partir de 2002, embora as primeiras famílias tenham se mudado para a área cinco anos antes, quando as operações da empresa foram suspensas. Formaram o Movimento Social de Luta Pela Moradia, Terra e Reforma Agrária, ligado ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MST).

Mantêm ali uma grande produção de alimentos orgânicos. O principal cultivo é o café agroecológico Guaií. “Não existe mistura no nosso café. Nós realizamos o processo de classificação, separamos por lote, por qualidade do nosso produto. É um café 100% arábico, sem nenhum produto que venha descaracterizar seu sabor original”, contou Roberto Carlos do Nascimento, coordenador da Cooperativa Camponesa do Quilombo, às repórteres Emilly Dulce e Lu Sudréem, em novembro de 2018, no jornal Brasil de Fato. Naquele ano eles contabilizavam em torno de 550 hectares de café já plantado que geraram 8.500 sacas.

Desde 2015, o antigo proprietário da usina, Jovane de Souza Moreira, e seus familiares tentam no judiciário recuperar a terra que chegou a ser desapropriada pelo governador Fernando Pimentel, do PT, “por interesse social para fins de colônia agrícola”. A desembargadora Maria Alice do TJMG, porém, suspendeu liminarmente o decreto alegando que só a União pode fazer reforma agrária. A área que foi definida pelo judiciário correspondia apenas ao local onde estava instalada a residência da família.

Por isso a reintegração de posse deveria ser de uma área delimitada. Como não ficou claro na decisão judicial, ela poderia variar entre 26 e 63 hectares, como explicou Kelli Mafort, da Coordenação Nacional do MS. Trata-se da “área que supostamente pertenceu a Jovane de Souza”. Nas explicações dela, neste espaço a Policia Militar encontrou a Escola Popular Eduardo Galeano. Foi a primeira a ser derrubada. Segundo a PM, pelos familiares de Souza. Também foi atingido um barracão coletivo e a residência de seis famílias.  A reintegração deveria terminar aí, na quarta-feira. Mas a PM permaneceu no local o que foi mais um sinal de que desejavam despejar a todos.

A Defensoria Pública de Minas Gerais ingressou com um agravo no tribunal pedindo a suspensão do despejo por conta da pandemia. O mesmo pedido foi reforçado por um documento endossado pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos (CONEDH), a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção Minas Gerais (OAB-MG), a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e a Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDESE). Todos alertaram para os riscos de uma ação como essa diante da pandemia. Mas nada sensibilizou o desembargador André Luiz Amorim Siqueira, que manteve a decisão.

Isso, porém, não impediria o governo de negociar o modo e a época para cumprir a decisão, limitando a ação ao cumprimento do que foi decidido e acordado judicialmente. Evitaria desabrigar famílias em um período de pandemia. Faltou interesse político. Na verdade, como se disse acima, havia um interesse político de atacar o quilombo mais por questões ideológicas. Criariam mais um problema social. Justamente por um governo que fez campanha prometendo renovar a maneira de fazer política. Vê-se agora, que o novo, na verdade, tem um viés altamente ideológico, sem maiores preocupações com o interesse da população. Tampouco com qualquer compromisso com os trabalhadores e os mais necessitados. Nada de novo. Porém, desta vez, ele perdeu. Resta saber até quando?